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quarta-feira, 5 de novembro de 2025

Quando a frase tropeça, mas a ideia caminha

A recente declaração de Lula, afirmando que “os traficantes são vítimas dos usuários”, caiu como uma pedra no campo da opinião pública — provocou ondas, distorções e julgamentos rápidos. A frase, isolada, é como um desvio perigoso: afinal, reduzir o tráfego a uma vítima parece desconsiderar o poder, a violência e o lucro que movem o narcotráfico. No entanto, ao sair da superfície da literalidade e mergulhar na intenção, entende-se que o presidente tropeçou na forma, mas designado para um fundo incontornável: o tráfico de drogas na América do Sul é, em larga medida, consequência de uma procura global — sobretudo da Europa e dos Estados Unidos.

A economia da droga é uma engrenagem trilateral. A ponta mais vulnerável são os países latino-americanos, produtores e corredores de substâncias; no meio, o lucro que atravessa fronteiras e riqueza de redes poderosas; e, no topo, as nações consumidoras, onde o tráfico de classes altas financeiras e as guerras silenciosas das periferias tropicais. O Brasil, como boa parte da América do Sul, não é o epicentro do consumo, mas o palco do confronto entre ausência de oportunidades e oferta fácil de dinheiro ilícito. Quando Lula fala em “vítimas”, talvez evoque essa lógica perversa: jovens cooptados pelo tráfico porque o Estado lhes manda negociar tudo antes mesmo do crime.

A frase foi mal colocada, e o erro das palavras mal postadas é sempre grande — especialmente em tempos em que a interpretação virou esporte de guerra. Mas é preciso considerar que uma reflexão sugerida não é banal. Apontar o dedo apenas para o traficante de chinelo, sem encarar o consumidor elegante de Amsterdã ou Los Angeles, é negar o outro lado do espelho. O tráfico não nasce no morro; nasce na festa, na bolsa, no mercado que prefere não se ver como parte da cadeia.

Entre a palavra e o sentido há sempre um desfiladeiro, e Lula, dessa vez, escorregou na travessia. Mas o ponto a que queria chegar — a hipocrisia global que criminaliza os pobres e consome o produto deles — continua de pé. Foi uma linguagem que falhou, não é uma ideia. E no jogo das narrativas, às vezes a frase tropeça, mas a verdade continua caminhando.

E há algo que é uma ocorrência furiosa à fala do presidente comprova, é que o cinismo internacional está bem vivo: todos querem combater o tráfico, contanto que o pó continue chegando pontualmente às narinas civilizadas do primeiro mundo. No fim das contas, há muita gente que prefere julgar a gramática de Lula a encarar a gramática do próprio vício. E talvez seja essa a tragédia da política contemporânea: quem ousa apontado para a ferida é sempre prejudicado por tê-la nomeado em voz alta.


Manuel Flavio Saiol Pacheco
Manuel Flavio Saiol Pacheco
Doutorando e Sociologia e Direito pela Universidade Federal Fluminense (UFF), Mestre em Justiça e Segurança pela Universidade Federal Fluminense (UFF), Especialista em Desenvolvimento Territorial pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).. Possui ainda especializações em Direito Tributário, Direito Constitucional, Direito Administrativo, Docência Jurídica, Docência de Antropologia, Sociologia Política, Ciência Política, Teologia e Cultura e Gestão Pública e Projetos. Graduado em Direito pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). Advogado, Presidente da Comissão de Segurança Pública da 14º Subseção da OAB/RJ, Servidor Público.

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