19.2 C
São Paulo
sábado, 31 de agosto de 2024

Resenha literária – Mecânica Aplicada de Nuno Rau

Em tempos de identidades intercambiáveis, caminhos curtos e relativismo, Nuno Rau nos parece dizer que a poesia é como um advento estético como qualquer outro: precisa de trabalho e cuidado. Mas ao contrário da imagem que temos de poetas que escrevem dessa forma, Nuno não é um poeta bucólico e nem transmite versos tranquilos e lentos.

Em Mecânica Aplicada, em versos livres, que o próprio Nuno diz que nenhum verso é verdadeiramente livre, na realidade sempre estamos presos a formas poéticas que precisam dizer algo junto do conteúdo, sendo assim, em muitos poemas, o poeta entrecorta frases em versos diferentes, fragmentados assim como os discursos da nossa era.

Na superficialidade de dias como hoje, que tudo aparece acontecer rápido demais para se assimilar verdadeiramente surge uma espécie de angústia cyber onde o poeta conversa com alguém que não consegue encontrar seu espaço e sua autonomia como nos versos: “você não passa de um sintoma” no poema firewall ou no verso “o medo de se perder” em wireless. Há outros versos que revelam essa falta de significado, como se a existência fosse uma ofensa de algum deus que engendra nosso destino:

Punk de olheiras profundas, bilheteiro do Circo Dos Horrores, ladrão

Da chave da caixa de Pandora, Gemia mais um verso como resposta À cusparada desse deus

Que nunca vai morar aqui.

A poesia no poema hybris punk symbolo também parece como uma resposta a essa totalidade aos quais os deuses se propõem, em uma época em que eles parecem distantes da realidade.

As intertextualidades, que não é um fenômeno único da nossa época, mas o uso de hyperlinks acentuou essa questão, dá a sensação de que a pós-modernidade é essa colcha de retalhos em que nada é original e que precisa de inúmeras referências para compor a sensação do hoje.

Por mais que a primeira vez que eu tenha lido Mecânica Aplicada, não tenha entendido a poesia de Nuno, é inegável que a capacidade dele de criar imagens ricas é muito boa. Dentre as mais criativas imagens está: “como a treva e o cio/das estrelas cancros de rancores” no poema Trem Fantasma.

Valendo-se de conceitos filosóficos e densos, como no poema “Zeitgeist ou parapsicologia da composição”, ele parece zombar um pouco da validade de conceitos quase metafísicos nos tempos de hoje, já que tudo parece um caos tecnológico e vazio de sentido. Também deve ser por isso que muitos poemas desse livro, como firewall e wireless tem títulos de tecnologias só disponíveis na pós- modernidade.

Mas ao mesmo tempo, a densidade desses poemas, promovem uma reflexão sobre os tempos de hoje que não fica só no campo do logos, é também, uma ótima experiência estética. Já que o que é hodierno é complexo, o poeta não diminui essa questão e trata como deve ser tratado.

Mecânica Aplicada é uma tentativa de recobrar o sentido da vida em meio a sentidos fugidios e diversos, ao mesmo tempo que zomba dessa possibilidade. Nesse livro, há a consciência de que a poesia é a melhor forma de exprimir isso, com a tensão que a atravessa.

Autor:

Felipe Arruda Nascimento

DEIXE UMA RESPOSTA

Por favor digite seu comentário!
Por favor, digite seu nome aqui

Leia mais

Patrocínio