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sábado, 31 de agosto de 2024

O transbordar de uma música

Era uma manhã de domingo quando o aplicativo tocou para Ana fazer uma nova corrida.

Durante o trajeto para ir buscar outro passageiro, Ana ligou o rádio e estava tocando “I Don’t Want To Talk About It”, de Rod Stewart, que ela mais conhecia como “twocumai” como era cantada pelo seu filho quando criança.

Como ela estava sozinha, aumentou o volume no máximo e deixou-se embalar por aquela música que tanto representava na vida dela. Ela já ouvira diversas vezes aquela música, em ocasiões diversas, mas, naquela manhã, ela pode sentir as notas daquela melodia tocando o seu ser fazendo-a recordar o quão significativa era aquela música para ela e doeu, doeu muito.

Naquele breve momento, Ana se deu conta de que não podia voltar atrás; ela não podia voltar no tempo e trazer de volta uma fase que passou e de quantas oportunidades de fazer o certo e de estar atenta em relação ao amor dispensado ao seu filho.

Percebeu, então, que foram poucos os momentos de conexão, e essa música, que outrora tocou repetidas vezes, foi uma dessas conexões e que até hoje é uma memória preservada.

Mas, sempre que escutava aquela música, vinha a dor, a culpa por não ter sido criteriosa. A bem verdade é que ela era crua demais e nunca fora amorosa com seu filho como a melodia da música era.

Ana não se fazia representar pelo amor maternal. Sempre foi uma figura biológica, geradora, só. Apenas e tão somente isso.

Enxugando com dificuldade as lágrimas que jorravam de seus lindos olhos castanhos, sentiu o quanto havia perdido tanto em sua vida por não ter sentido, de fato, o amor, e que não sente até hoje.

Aos olhos dos outros isso não acontecia com a figura biológica, mas, infelizmente, Ana era a prova viva de que qualquer um poderia colocar uma máscara para encobrir as falhas.

Lamentou-se profundamente por essa constatação e chorou. O choro foi de uma intensidade que há muito não sentia, aliás, ela nem lembrava da última vez que havia chorado daquela forma. Foi um choro de choque de realidade, saudade, frustração e muita, mas muita dor.

Por um breve momento acreditou que nascera seca e com o tempo havia se perdido, pois deixou escapar por entre seus dedos os momentos mais incríveis que ela poderia ter tido ao lado de seu filho.

Engolindo a seco isso tudo que se transformava em tristeza, esperou. Só assim ela conseguia pensar no dia seguinte.

Não que ela quisesse chorar ou que preferia guardar tudo, é que simplesmente as lágrimas não vinham e era uma espécie de conformismo que habitava o seu ser, mas, que naquela manhã, sentiu que a represa tinha sido aberta. Abriu por ela estar fazendo um trabalho braçal que não havia escolhido: o de ser mãe, mas lembrou-se no tanto que teve que administrar, por ser tola mais uma vez e não reconhecer as artimanhas do seu carcereiro.

Autora:

Patricia Lopes dos Santos

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