Muitas das casas possuíam plantas, em sua maioria vasos com folhagens nas garagens e sacadas, mas nada que pudesse conferir ao bairro o nome de Jardim das Flores. A exceção ficava por conta de uma residência ao final da rua sem saída, construção antiga no fundo do imóvel e que tinha a frente toda repleta de margaridas. Ficava um metro acima da calçada e era um espetáculo na primavera, período de floração. Ali morava um casal de idosos sem filhos, e o cachorro Gonzaga, vira-lata de porte médio, todo branco, de idade avançada e saúde bastante frágil. Só não fora sacrificado porque seus donos consideravam pecado fazê-lo.
Margarida… Essa delicada flor simboliza o amor inocente e a sensibilidade. Representa pureza, paz, bondade e afeto. Na antiguidade acreditava-se que medicamentos à base dessa planta poderiam curar doenças nos olhos, e na Inglaterra era usada como remédio, eficiente somente se utilizada com uma boa dose de superstição. A flor também era utilizada para limpar ferimentos, tratar febre e gota no século XIII.
Essa rua era bastante arborizada e no seu final havia um córrego que algum dia seria canalizado. Em sua maioria os moradores saíam logo pela manhã para o trabalho ou escola, retornando somente ao final da tarde. Assim, durante boa parte do dia praticamente não havia movimento, e aos domingos era ainda mais calma.
Por volta das oito horas vinha Margarida, varredora de rua que não escondia idade, mas dona de invejável disposição, algo que esse trabalho realmente exige. Nunca foi de falar muito. Morava próximo ao bairro num pequeno cômodo alugado nos fundos de uma casa. Sobre ela ninguém nada sabia, de onde viera, se tinha parentes, enfim. Sua única distração era passar horas sentada à beira do córrego, vendo os pequenos peixes que habitavam o local. Em seu uniforme todo azul, uma margarida de crochê que combinava perfeitamente com ela.
Fosse por sua vida e trabalho, Margarida seria apenas mais uma pessoa comum a passar despercebida na comunidade, mas possuía um dom singular. Assim que o som de sua vassoura era ouvido empurrando as folhas e outros detritos pelo asfalto, todos os cães aguardavam pacientemente por sua passagem. Fossem dóceis ou agressivos, presos nas casas ou soltos na rua, recebiam dela um pequeno pedaço de pão, sempre envolto num guardanapo branquíssimo no qual tocava somente após retirar as luvas. Uma pequena porção que parecia saciá-los plenamente.
Enquanto ela estava na rua não se ouvia um único latido. Cães que estivessem doentes, feridos ou em recuperação recebiam uma fatia completa, na verdade simplesmente pão amanhecido que Margarida levava com ela numa sacolinha presa à cintura. Do outro lado, levava os sacos de lixo que ia utilizando ao longo do trabalho. Gonzaga, mesmo sem ver ou ouvir absolutamente nada, pressentia sua proximidade, levantava- se e caminhava com grande dificuldade até a grade, e no instante exato abria a boca para receber sua porção, que lentamente trazia de volta para degustar em sua casa de madeira. Havia cães que viviam nas ruas e faziam uma espécie de escolta para a varredora, acompanhando-a em toda a extensão da via.
Certo domingo à tarde Margarida se dirigia ao local de descanso, quando se sentiu mal e caiu sobre a calçada. Foi muito rápido. Tentou se levantar, mas conseguiu apenas encostar-se desajeitadamente no muro de uma casa. Sentiu que não adiantaria pedir socorro, não somente pela ausência de movimento na rua, mas por perceber que sua hora de partir havia chegado. Sentiu seu corpo paralisando, a respiração dificultada, dor intensa e medo.
Nesse momento alguns cães se aproximaram, ficando ao seu lado, bem próximos, como a guardá-la e fazer-lhe companhia. Margarida estava perto de perder de vez os sentidos quando percebeu algo caindo sobre seu colo. Uma fatia de pão, destinada aos mais fracos, doentes, velhos, aos que mais precisassem. Gonzaga havia deixado cair sobre ela a última fatia recebida, que havia guardado. Mal pode olhar para ele, pois não conseguia mais se mover, mas esboçou um sorriso de gratidão pela grandeza do gesto amigo.
Margarida foi encontrada poucas horas depois, com alguns cães ao seu redor, e outro, próximo à grade, logo acima ela, junto às flores todas abertas, pois era primavera. O veículo que viera buscar seu corpo foi acompanhado pelos animais soltos até o final da rua. No local onde faleceu, numa pequena fresta entre a calçada e o muro, nasceu uma muda de margarida. Certamente a semente foi trazida ali pela água da chuva.
Autor:
Miguel Arcangelo Picoli é autor do livro Momentos (contos) e Contos para Cassandra (em homenagem à escritora Cassandra Rios).