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quinta-feira, 28 de novembro de 2024

A Liga precisa dar liga: futebol e distribuição de renda

Já escrevi em diversas crônicas que o futebol não se encontra alijado dos problemas ou das questões sociais que nos afligem. A violência, por exemplo, que nos atemoriza e gera tanta insegurança também está presente nos jogos de futebol. Os estádios, de uma forma geral, não são lugares seguros e os conflitos entre torcedores são frequentemente destacados na nossa imprensa. Preconceitos, os mais diversos, ecoam nos campos de futebol, às vezes de forma mais velada e outras em altos brados, tais como em nossas ruas, escolas, escritórios e moradias.

O tema dessa semana não foge à regra. Ele aborda a distribuição de renda, uma questão séria que, em virtude de sua desigualdade no Brasil, exclui de milhões de pessoas o direito à cidadania plena e que, no âmbito do futebol, gera discussões ácidas entre os clubes que pretendem criar uma liga para conduzir o futebol brasileiro.

A sua constituição poderá alterar as estruturas do nosso futebol. Seguindo o formato já consagrado nos principais países da Europa, os clubes poderiam reestruturar o calendário, buscar a internacionalização das suas marcas e, talvez, desenvolver um modelo mais justo no que se refere à distribuição das receitas, em particular, a grana da venda das transmissões dos jogos.

Como bem apontou o jornalista Rodrigo Capelo, o senso de coletividade é fundamental para o sucesso da liga e para a reestruturação do modelo que vigora hoje no Brasil. Seguindo as ideias do jornalista especializado em negócios do esporte, é fundamental que os clubes se coloquem como aliados e não como rivais e, com a força do grupo, o poder de negociação da liga se fortalece e todos saem ganhando.

O ponto central da discórdia não surpreende ninguém, é a distribuição dos recursos de forma mais igualitária. A cizânia ensejou a criação de dois grupos: a Liga do Futebol Brasileiro (Libra) e a Liga Forte Futebol (LFF). Ambas objetivam a mesma coisa: a constituição de uma liga para a organização do Campeonato Brasileiro das Séries A e B a partir de 2025, quando findará o atual contrato de direitos de transmissão com o Grupo Globo. Os grupos divergem, claro, quando se trata da divisão das receitas.

Durante a Ditadura (1964-1985), o economista Antonio Delfim Neto, que encabeçou o período que ficou conhecido como “Milagre Econômico”, afirmou, quando era Ministro da Fazenda, que era necessário “fazer o bolo crescer, para depois dividi-lo”. O ideário de desenvolvimento econômico que vigorou no país pode ser, de forma menos figurada, ser reescrito da seguinte forma: “fazer o PIB (Produto Interno Bruto) crescer, para depois dividir a renda”.

A proposta da Libra bebeu nas águas de nosso ex-ministro. A ideia é que o bolo cresça para que a distribuição dos recursos seja mais igualitária. Na teoria, a proposta é interessante, mas na prática, no mundo dos homens, a realidade é outra. Quem conhece a história da humanidade, em particular no seu viés econômico, sabe, de cor e salteado, que o bolo jamais crescerá para depois ser dividido. A cada fornada, alguns grupos, os mais bem posicionados social e politicamente, comem as poucas fatias que foram produzidas e os grupos menos favorecidos ficam com as eventuais migalhas. A situação pouco se altera na medida em que o bolo cresce, e ele cresce. Bem alimentados e fortes, os grupos privilegiados se lançam, vorazmente, a cada fatia adicional. Não interessa o tamanho do bolo, para os menos favorecidos só ficam os restos.

A Libra defende que haja um período de transição na distribuição das receitas geradas por direitos de transmissão e patrocínios na nova liga. Durante esse intervalo de transição, enquanto o bolo cresce, a proposta é um modelo de repartição 40-30-30. Para o leitor que não acompanha mais de perto a discussão, eu vou tentar esclarecer essa sopa de números. O bolo seria repartido 40% de forma igualitária, 30% por performance e 30% pela audiência de cada clube. Passada essa fase, que pode durar até 5 anos, será 45-30-25.

Já o Forte Futebol defende o modelo 45-30-25 desde o seu início e que a diferença entre o time com maior remuneração e o que tiver os ganhos mais baixos não seja superior a 3,5 vezes. O leitor pode fazer uma pergunta: Essa diferença de 5% na distribuição igualitária dos recursos terá um impacto significativo na distribuição da renda?

Vejamos o que ocorre na principal liga do planeta, a Premier League. Ela adota o modelo 50-25-25, ou seja, 50% é igualitário, 25% pela performance na temporada e 25% pelo número de jogos transmitidos. Enquanto a Forte estima uma diferença de aproximadamente 3,5 vezes entre os clubes mais bem remunerados e os menos remunerados, a diferença na Premier League é de 1,5 vez.

A questão central passa, inevitavelmente, pelo dilema de Delfim Neto. Em que momento se deve comer o bolo?  A Libra, encabeçada por Flamengo e Corinthians, os clubes que detêm as maiores fatias da nossa desejada iguaria, defende a “temporária” manutenção da desigualdade pelos próximos 5 anos ou até que a Liga arrecadasse 4 bilhões. O problema desse posicionamento já foi destacado, há alguns anos, pelo diretor de fair play financeiro da UEFA, Andrea Traverso. O dirigente europeu afirmou que “há uma tendência mundial de que os ricos cresçam mais rápido e se tornem ainda mais ricos”. Por sua vez, o Forte Futebol é contra manter o privilégio dos clubes acima destacados e defende que a distribuição, desde o primeiro ano da nova liga, seja mais igualitária.

A rivalidade, dentro dos limites esportivos, é vital para o futebol. Ela é construída nas histórias dos clubes, baseadas no profundo sentimento de paixão que o futebol desperta e precisa ser alimentada, diuturnamente, pela competitividade. A manutenção da desigualdade na distribuição dos recursos entre os clubes do futebol significará a redução da competitividade, da rivalidade e o consequente desinteresse pelo esporte por parte de seus fãs. O campeonato inglês é o melhor do planeta, logicamente pela sua fartura de recursos, mas também pela sua alta competitividade e rivalidade.

Talvez seja a hora dos privilegiados estudarem um pouco o que foi o “Milagre Econômico” capitaneado por Delfim Neto. A desigualdade social, fruto da concentração da renda, resultou da divisão sempre injusta do bolo. Talvez, por isso, o conceito de milagre seja correto, durou muito pouco tempo e suas dádivas ficaram restritas a alguns escolhidos. Não é esse o futebol que eu desejo e, entendam, um número crescente de clubes fortalecidos não representará apenas campeonatos mais competitivos, mas também maiores oportunidades de trabalho, melhores remunerações e condições de vida mais favoráveis para muitos profissionais. É o futebol se confundindo com a sociedade.

Autor:

Luiz Henrique Borges

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