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sexta-feira, 22 de novembro de 2024

Nina e Miguel: Assassinato no Cânion Paragem dos Ausentes

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Meu virtuoso, e muitíssimo amado, Miguel. Esta carta, ditada por mim e escrita por minha romântica avó, deverá ser aberta somente às 18 horas da próxima sexta-feira. Pontualmente!

O local: no Cânion Paragem dos Ausentes, onde cunhamos as iniciais de nossos nomes.

Sobre celular? Nem pense! A regra prevalece, assim como as demais singularidades de nosso romance. Não ouse tentar manipular uma perita criminal desprovida dessa tecnologia invasiva. Será o reencontro de dois amantes à antiguidade.

….

A Carta

Meu querido e muito adorável namorado, não olhe para trás, aguarde o sinal. Eis a primeira boa notícia: concluí minha pesquisa de campo, e ninguém ousará me chamar de louca, antes, e com muito orgulho, me considerarão uma pesquisadora sutil e sagaz,

Neste momento, já o avistei enquanto caminho em sua direção. Preparei tudo com o rigor de minha personalidade, da qual você tanto se queixa, mas muito o tem surpreendido. Como cheguei até aqui? Não imagine que foi pelo acesso comum e vigiado, mas logo segui pela trilha secundária, pouco utilizada por ser mais íngreme, porém, mais seguro para uma ex-escoteira solitária em sua excursão. Imagine você, caminhei durante toda uma noite. Não pense em exaustão, trouxe apenas uma mochila com dois lanches, medicamentos emergenciais e água, além de muito entusiasmo e a certeza de que tudo daria certo.

O espaço está fechado para visitações durante dez dias devido a previsão de temporais. Não se preocupe! Estou sempre muito bem equipada, inclusive para me proteger de catástrofes naturais, não de todas, porém, talvez de muitas. Atente para este segredo: tenho meu recanto estratégico entre essas rochas, e noutros ambientes de difícil acesso, perto e longe daqui – poderíamos conversar sobre isso futuramente. Sim, poderíamos…

Sobre família, trabalho, curso…, tomei todos os cuidados para não ser descoberta, e esses cuidados incluíram você, de quem mais senti falta nesta minha aventura científica. Meu amor, você não imagina o quanto sua obstinada namorada se esforçou para comprovar uma teoria tida como fabulosa para muitos, incluindo meus orientadores. Sinto ter agido de acordo ao mantê-lo alheio sobre o assunto. Temi desapontá-lo.

Tenho sido uma filha, uma irmã, uma funcionária, uma pesquisadora e uma companheira amorosa, responsável e dedicada. Assim, não me foi difícil apresentar um álibi para justificar minha ausência. Enfim, foram, não duvido, prolíferos cinco dias dedicados á ciência, à vida, à morte, à natureza.

Contudo, devo antecipar: você foi o único para quem eu menti. Mas, não se aborreça! Posso garantir que minha mentira, ou melhor, omissão, é jurisprudente e compensadora.

Não teremos tempo para repreensões. Prometo!

Sua libidinosa, afrodisíaca, e muito apaixonada, Nina.

Miguel está eufórico, mas se esforça para seguir as instruções de Nina, não pretende desapontá-la. Ela surgiu em sua vida há 15 dias, 12 horas e 59 minutos, durante o velório de sua mãe, quando todos pensaram se tratar de uma freira desconhecida de todos, menos de sua mãe. talvez representando alguma das entidades beneficiadas pelas doações e serviços prestados por ela, antes de descobrir o câncer pancreático que a vitimou.

Sinceramente, Nina, ainda não declarada Nina, não parecia ser uma freira comum: sua postura, seu modo de caminhar, sua presença amistosa e intimista… Uma mulher elegante, esbelta e distinta, assim fora definida pelo filho enlutado, mesmo antes de ver seu rosto.

Por aguçar a curiosidade dos familiares e amigos presentes, também despertou especulações acerca de sua origem; parecia uma madre enlutada com seu hábito preto e seu rosto coberto por um véu da mesma cor. Todos a respeitaram, sequer se aproximaram para cumprimentá-la. Sua imponência não favoreceu qualquer possibilidade de aproximação. Sim, seu comportamento cerimonioso a manteve distante, embora tenha chamado a atenção dos curiosos, inclusive de Miguel, o único de quem ela se aproximou e para quem entregou um pequeno envelope com suas mãos enluvadas, dentro do qual havia um lenço de cetim dobrado e nele apenas o endereço pitoresco do segundo encontro que seria o início de um romance atípico com aquela misteriosa devota da fé cristã. Foram seis dias de presença e cinco de ausência, estes os mais ansiosos de sua vida; aqueles os mais imprevisíveis, ou excêntricos, de sua vida. Nina o fazia feliz e isso era tudo o que importava para o jovem oceanógrafo de 25 anos.

Manter o caso em segredo durante os três primeiros meses fora sugestão dela, para se conhecerem sem possíveis intromissões negativas.

Alguns segundos se passam e ele consegue ouvir os passos lentos de sua namorada caminhando em sua direção. Ela usava um par de sapatos masculinos dois números maiores do que o seu.

Miguel ouve sua voz. Que saudade! “Guarde a carta num de seus bolsos, tire toda a roupa e jogue-as para trás! Em menos de um minuto o rapaz estava nu e com os braços erguidos para o alto. “Muito bem, meu jovem. Agora se atente a natureza a sua frente! Estou me aproximando, posso sentir o cheiro do meu amor e ouvir sua respiração. Um, dois, três!

Miguel não gritou, sua queda foi assistida por sua algoz, nem riso, nem lágrimas. Com os braços abertos, girando o corpo em torno de si até cair de joelhos com os olhos voltados para o céu, a diabólica mulher orou como a mais fiel devota ao Divino.

Seu regresso teve início por volta das 19 horas,

As notícias sobre o suicídio do jovem oceanógrafo Miguel Córdoba ocorreram somente quatro dias após seu desaparecimento, quando o local foi reaberto para visitação, e seu corpo em decomposição foi descoberto por um fotógrafo argentino.

Sobre as investigações: seu celular foi periciado, mas não havia registros suspeitos; assim como não havia inimigos, ou pessoas com indícios suficientes para despertar o interesse da polícia. Certamente a morte da mãe o abalara a ponto de atentar contra a própria vida. No entanto, para um ativista incansável em defesa da natureza, a morte no Cânion Paragem dos Ausentes significa mais que a interrupção prematura de uma vida.

Autora:

Tereza Duzai

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