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sexta-feira, 22 de novembro de 2024

A bruxa

*Para Wilma Duarte… Com amor e admiração

“Ali,… por certo teria ocasião de ver coisas mirabolantes, para contar aos meus embasbacados conterrâneos, quando voltasse” (Léu Vaz, O

Burrico Lúcio)

Bastava que Carina enchesse o quarto com as suas histórias espetaculosas para que Selma gargalhasse sem o mínimo esforço! A casa era grande, e suas partes distribuídas de forma a atender satisfatoriamente todos os seus moradores. Mas nem de longe as irmãs uterinas abriam mão da suíte que ocupavam! As vibrações etéreas naquele ambiente eram mais promissoras do que em qualquer outro espaço. Um oásis!

Uma contava dezoito anos e a outra vinte e dois. A primeira tinha um namorado, a segunda acabara de encerrar uma relação. Uma perdia-se, embevecida, no som da harpa que a outra tocava. Uma encantava-se com a ornitologia, a outra talhava indefesos bem-te-vis a fim de ver-lhes as vísceras. Uma era assídua nos estudos, a outra não. Uma tinha os olhos amendoados, a outra também. Uma amava a noite, a outra era indeclinavelmente diurna. Cumpriam rotinas bem parecidas… Envolviam-se e gostavam de atividades semelhantes… Era infrequente uma separar-se da companhia da outra!

Desde a infância entreolhavam-se, e reconheciam-se participantes de uma conspiração! Um segredo que as uniria para a eternidade! O medo fora despertado. Mas, despertadas também foram as forças extraterrenas que as impulsionavam para uma elevada posição de discernimento hermético. Efêmeros acenos identificadores captados, codificados, armazenados e comumente recuperados traduzidos em tentação…

Uma fora acometida por moléstia endêmica virulenta, a outra fizera guarda constante, apesar dos apelos da enferma para que todos se afastassem… Principalmente a outra. Temia

a contaminação! A sentinela ausentava-se somente depois de haver coberto a doente com leves e coloridos edredons. Fingia apartar-se… O pernoite era realizado da acanhada fresta que a porta da alcova da moribunda ofertava! Uma observava inerte o corpo inapto da outra…

Vontade de invocar os primitivos rituais da bruxaria… Impossível! Era aleiýada sem a presença da outra! Passivas de realidades engessadas…

Tácitos dias arrastavam-se completando meses de agonia prolongada! As parentas não toleravam as frustrações, estavam acostumadas com os privilégios! Menosprezavam raivosas a vida unitária que estavam levando! Queriam ser plural… Sabiam que ainda não era o tempo do abate! Este era o bálsamo tranquilizador! Porém, ignoravam o fim da afobação… Este era o motivo da debilitante fadiga! Um dia tivera um sonho de cores pouco acentuadas, mas com ativo conteúdo oculto! Alegrou-se… A cura sucedera!

Celebraram empregando formalidades pagãs. Manifestaram gratidão lançadas sobre a terra em preces longínquas. Cantaram, fumaram, sapatearam, choraram, beberam, dançaram, vincularam-se, tiveram relações… Estavam unidas e fortes outra vez! As risadinhas satisfeitas eram a expressão desta correspondência.

Contracenavam  amiúde  com  as  rudes  punições  sociais.  Reýeitavam  as suas presenças desde a escola regular até bailes, encontros ýoviais em pracinhas e lanchonetes… Impiedosos, não as queriam próximas! Famílias pauperizadas emocionalmente temiam-nas, execravam-nas… Numa digressão tola imponderável prescreviam uma contabilidade moral questionável! Sem brechas nos encadeamentos… Conviviam rente a um quadro de disputa simbólica… Suas vidas não podiam ser vividas por partes! Eram abrasadores instrumentos de comunicação humana… Uma padecia com o afastamento, a outra não!

Uma lançava brandos e razoáveis estragos nas redondezas, a outra não.

Uma mantinha combinações e

proporções regulares, a outra era inexata. Uma carregava chagas enclausuradas no coração, a outra n’alma. Uma era reticente, a outra não. Uma expelia anýos, a outra o mal. Uma era consubstanciada por engodo, a outra não. Uma era sensível à penúria dos meios, a outra também. Uma libidinosa, a outra donzela. Uma era insincera, a outra temível. Uma mártir, a outra sacerdotisa. Uma homicida, a outra também.

Felício teve o seu epílogo através de violenta forma… Não sentiram remorso. Justificaram-se vítimas do escárnio e das malandragens do guri. O insignificante patife era odiado pelas irmãs tanto quanto as odiava! Articularam o extermínio no domingo, executaram na sexta-feira maior. Dia morno, porém expressivo, de traduções sagradas.

O pequeno mau caráter de temperamento infrator, treýeitos adamados e conduta dissimulada fora abordado e atraído no momento em que deixara o campo de futebol. Suas formas magras, braços longos, pele morena bem clara, cabelos finos, claros e muito lisos, aparência de doente, olhos de preguiça, movimento de pernas e braços em descompasso, foram percebidas à longa distância. Daí para ser capturado, não durou muito! Uma fê-lo entrar no transporte, a outra acelerou.

Os seus dentes foram extraídos um a um sem o consolo do anestésico, afinal, as comparsas não tinham habilidade e nem interesse em manusear a substância! A sua língua fora grampeada no lábio superior, obýetivando o aprimoramento de sua fala desaforada. Os dedos das mãos foram esmagados visando a reflexão do seu comportamento descortês. O músculo cardíaco fora arrancado brutalmente… Todos os procedimentos acompanhados por choques que a água fria, na qual estava submerso, intensificava.

As flores perderam o status alegre que lhes é comum e incorporaram cunho de mortório. As lágrimas eram ensaiadas e não convergiam com a alegria pura do alívio. Incensos de alecrim, canela e menta protagonizaram o rito de passagem.

Velas brancas, amarelas e vermelhas antagonizaram a conclusão.

Uma lavou a mão da outra. Abraçaram-se. Olharam-se. Sorriram. Seguiu-se a liturgia dos votos de silêncio. Uma estava feliz, a outra também. Uma era bruxa, a outra não.

Conto extraído do Livro:

Duarte, C. (2019). A Bruxa. In: Medeiros, M. V. de. (2019, org.). Cuentos para no dormir. Ciudad Autónoma de Buenos Aires: Lumiere.

Autora:

Cassima Duarte Palmas-TO, 02.ýulho.10

5 COMENTÁRIOS

  1. Que delícia poder ler algo tão surpreendente!!! Muito bom saber que o Jornal Tribuna se preocupa em nós oferecer o melhor! Parabéns Doutora Cassima pelo conto fabuloso!! Precisamos desses contos toda semana para surpreender a mente e a rotina.

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