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quinta-feira, 28 de novembro de 2024

Monumentos e decadência: podemos apagar ou esquecer o passado?

Aos finais de 2021, o governo do estado de Goa, na Índia, inaugurou uma estátua do jogador de futebol português Cristiano Ronaldo. Mas a homenagem ao jogador três vezes campeão da bola de ouro gerou polêmica. Segundo o governo, o objetivo da estátua seria de incentivar e inspirar os jovens locais, mas Goa foi domínio português por mais de 400 anos, conquistando sua independência apenas em 1961, ou seja, no ano em que a indecência completou 60 anos, o estado ergueu uma homenagem à figura do ex-colonizador.

Não é de hoje que estátuas (tanto suas inaugurações quanto suas remoções) estão causando problemas. Em 2020, o movimento Black Lifes Metters tomou as ruas ao redor do mundo em protestos antirracismo após a morte de Geroge Floyd nos Estados Unidos. Na Europa, mais precisamente na cidade Inglesa de Bristol, manifestantes arrancaram uma estátua de Edward Colston – notório traficante de escravos – e a jogaram no rio. Pouco tempo depois, a estátua do Rei Leopoldo II da Bélgica – responsável pela morte de mais dez mil congoleses ao longo do século XVIII – foi vandalizada em Bruxelas. E, posteriormente, a estátua de Wilston Curchill amanheceu com os dizerem “era um racista” pichados.

Em 2017, o governo do estado da Virgínia, nos Estados Unidos, votou pela remoção da estátua do general confederado Robert E, Lee. Ícones da história sulistas dos Estados Unidos foram tomados por extremistas, supremacistas brancos e terroristas domésticos como símbolos de ódio, o que levou muitos a negarem relações com esses símbolos. A banda de rock sulista Lynyrd Skynyrd, por exemplo, que tradicionalmente apresentava-se com a bandeira confedera ao fundo (como símbolo de sua identidade sulista) deixou de utilizá-la. Ainda em 2017, meses depois, o movimento Right United, em Charlottesville, marchou em defesa da “história branca” e da “identidade europeia” supostamente em ataque.

 No Brasil, em 2021, a estátua do bandeirante Borba Gato foi incendiada. Um ano antes, crânios foram colocados na base da estátua como símbolo da matança promovida pela figura histórica. Manifestações como estas nos trazem uma velha questão sobre a importância da significação e ressignificação de imagens alegóricas do passado. Tanto as manifestações contra a estátua em São Paulo, na Virgínia, em Bristol ou em Goa, são manifestações contra a consagração de imagens do passado, imagens que representam a repressão, o racismo e o genocídio.

Críticos aos ataques alegaram que derrubar estas imagens poderia exercer uma forma de apagamento da história, já que precisaríamos de exemplos negativos para nos lembrar de não repetir no futuro os erros passados. Mas esta é uma perspectiva de pensamento histórico que pouco condiz com a produção acadêmica da filosofia do campo. Esta interpretação do passado como exemplo é uma visão da história como mestra da vida (historia magistra vitae) tipicamente romana que pouca relação tem com as técnicas de investigação históricas desenvolvidas ao longo do século XX da história como ciência. Manter ou não estas estátuas relaciona-se mais com a memória social que com a história quanto disciplina ou campo do conhecimento.

A memória é comumente associada a um fenômeno individual, pessoal. Mas, estudos ainda nos anos de 1920 e 1930, como os de Maurice Halbwacbs, demonstraram como a dinâmica da memória é, na maioria das vezes, socialmente construída e suscetível a flutuações. A forma como lembramos do nosso passado é uma produção do presente. Uma produção coletiva do presente. A memória – como operação coletiva de acontecimentos e interpretações – se integra em tentativas, muitas vezes conscientes, de definir ou reforçar um sentimento. Diversas políticas públicas são utilizadas para cristalizar a memória coletiva e, consequentemente, propagá-la. As datas comemorativas oficiais e feriados nacionais são exemplos. É o que o historiador Pierre Nora denominou como “Lugar de memória”. Por “lugar” Nora refere-se tanto a “lugar material”, quanto a “simbólico” e “funcional”. Ou seja, uma data comemorativa, uma rua que foi renomeada em homenagem a alguém, um museu, uma festa tradicional, uma estátua e mais. Segundo Nora, estes “locais” são resultados de uma dinâmica interativa entre a memória e a história. Estes “lugares” são marcos – físicos e imateriais – que atestam uma memória. Por isso, para que estes “locais” existam é preciso ter “vontade de memória”.

O Holocausto foi um dos momentos que marcou a história humana e não faltam monumentos e museus ao redor do globo. Após o fim da guerra uma série de medidas jurídicas foram implementadas e a noção de crime contra humanidade foi estabelecida. Em suma, o acontecido modificou as relações humanas, vivemos até hoje suas consequências. No entanto, pesquisa divulgada em abril de 2018, demostrou que nos Estados Unidos, embora 96% dos estadunidenses acreditassem no Holocausto, 41% acreditavam que o total de judeus mortos chegou a dois milhões (quando na realidade foram seis), e 66% não sabiam o que foi Auschwitz; e 51% acreditavam que Hitler chegou ao poder por meio de força (quando na realidade foi eleito). Os números são ainda piores entre os mais jovens que, em tese, estudaram o assunto na escola.

O lugar de memória em si – se pouco trabalho em políticas públicas, como a educação básica – não evita o distanciamento e eventual esquecimento dos eventos do passado. Somente manter ou derrubar estátuas não faz a sociedade se lembrar ou esquecer da história.

A celebre frase creditada ao historiador britânico Peter Burke diz que “a função do historiador é lembrar a sociedade daquilo que ela quer esquecer”. A história é, por excelência, a escrita sobre os acontecimentos do passado que segue, a priori, regras metodológicas em sua pesquisa e escrita. Ela não é, portanto, o passado em si. A memória, embora seja igualmente relacionada ao presente e não exatamente ao passado, é evocada muitas vezes de forma mais orgânica que a história. Por vezes até se confundidinho com ela. O historiador Jacques Le Goff, por exemplo, define a história como a produção científica da memória.

Estes “lugares de memória” podem ser, e muitas vezes são, tomados como fontes históricas pois foram erguidos como monumentos – mesmo que não criados como tal – por sociedades específicas que tinham neles a intenção de cristalizar uma memória, tinham um “vontade de memória”. Mas o monumento como figura material é mais uma testemunha da sociedade que o consagrou como tal que do passado que está referenciando. Afogar a estátua de Edward Colson não é apenas afogar a figura do negociante de escravos, é também afogar a sociedade que ergueu e manteve uma homenagem a ele. Erguer uma imagem a um famoso jogador de futebol português não é apenas homenagear o jogador, mas consagrar uma nação que a muito exerceu um poder imperial sobre o poder local. Se não há mais uma “vontade de memória” em manter estes “lugares de memória”, e se, ao contrário, este “lugar de memória” estabelecido no passado não mais conversa com a “vontade de memória” contemporânea, estes elementos podem e devem ser retirados de lugares públicos – o que não configura necessariamente depredações e vandalismo.

História e memória – embora relacionáveis – são coisas distintas que frequentemente se unem no senso comum. Retirar “lugares de memória” de espaços públicos em nada afeta a história.

Autor:

João Victor Uzer 

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