Capítulo Quarenta e Oito
– Santana…
– Fala, Carneiro…
– Já sei como o “automóvel” anda…
– E como?
– Você não vai acreditar…
– Fala de uma vez, homem de Deus…
– O carro é elétrico….
– Não entendi…
– Ele se movimenta com eletricidade…
– Então você não consegue andar com ele na cidade….
– Por que?
– Você não vai andar nos trilhos do trem, não é mesmo?
– Ué, e porque eu iria fazer isso?
– Você disse que o carro é elétrico…
– Sim, seu ignorante. Mas o carro tem uma bateria, que é carregada na rede elétrica…
– Ah… e quanto tempo dura essa carga?
– Acho que umas duas horas….
– Depois tem que recarregar de novo…
– Isso…
– E se a carga acabar em um lugar sem energia?
– Aí lascou…
– É… com o cavalo, não tem esse problema….
– Mas eu não disse que comprei um carro elétrico…
– Como não?
– Eu te falei que tem uma firma nova lá na América… agora eu sei o nome… é Ford. Eles estão fazendo uns carros que se movem com gasolina.
– E é desse que você vai comprar…
– Ainda estou pensando…
– Está certo… tem que pensar bem…
– Olha… até já existem alguns postos de combustível por esse mundão… mas é mais prudente esperar um pouco mais…
E assim os dois amigos continuaram a conversar amenidades, até para fugir um pouco do baixo astral que dominava o ambiente. Carneiro falava sobre seus sonhos, Santana discorria sobre a vida e assim os dois iam tocando em frente…
Marieta, depois de terminar seu afazeres no morgue, resolve se juntar ao chefe e seu amigo. Afinal, já havia terminado de preparar os corpos… com a ajuda de algumas amigas, é claro… e pensou em afastar-se um pouco daquele cheiro de morte que impregnava todo o seu local de trabalho.
– E então, Marieta… pronta para assumir o lugar do doutor Carneiro?
– Imagina, doutor…. ainda tenho muito o que aprender…
– Mas você sabe que ele vai viajar e te deixar cuidando de tudo….
– Sim… o doutor me falou… estou estudando tudo o que posso…
– E ela é uma excelente aluna, Santana… é a pessoa mais dedicada que conheci até hoje….
Marieta enrubesce, com o elogio.
– O senhor teve sorte… conseguiu uma excelente auxiliar…
– E vocês terão uma médica de primeira. Ela é mais competente que muitos colegas meus formados, lá na Capital….
– O senhor é muito bondoso, doutor Carneiro…
– Ele está certo, Marieta… as pessoas, quando vem ao consultório, perguntam sempre de você….
– Prá ver…. alguns preferem ser atendidos por ela… já nem querem mais meus serviços…
– Isso é ruim?
– Claro que não, Santana… isso quer dizer que eu preparei bem a minha substituta…
– Muito obrigada, doutor…
– E amanhã, Carneiro?
– O que é que tem amanhã?
– Você vai junto, recolher os corpos?
– Ah… o trabalho de campo…. não, não vou, não…
– Ué… mas você disse…
– Eu sei o que eu disse… mas amanhã o Delegado Juvêncio vai com seu ajudante e as três moças para a aldeia dos índios….
– E daí?
– Daí que eu prefiro esperar eles voltarem…
– Ué… e por que isso?
– Sinceramente… me sinto mais seguro escoltados por aqueles cinco…
– Mas eu posso te proteger, rapaz… ou não confia mais em mim?
– Não é isso, Santana… você sabe que a gente está lidando com forças sobrenaturais….
– É… deu prá perceber…
– E a gente é leigo nesse assunto.
– E daí?
– Daí que, se estamos com quem entende do riscado, podemos achar alguma pista nova para o caso…
– Carneiro… você está com medo? A fera só ataca à noite…
– Não é isso, Santana… é que o Juvêncio sabe o que procurar… facilita nosso trabalho.
– Então não é medo…
– Claro que não, homem…
– Se você está dizendo…
– Marieta, temos algum compromisso para essa tarde?
– Não, doutor… nenhuma consulta agendada, só se aparecer alguma emergência…
– Bom, então acho que podemos tirar o resto do dia de folga…
– O que pretende fazer, Carneiro?
– Estava pensando em ir ao riacho, pescar um pouco…
– Mas, homem… você nem gosta de peixe…
– Eu não quero comer o peixe… só pescar…
– Posso ir com os senhores?
– Claro que sim, Marieta….
– Mas já vou avisando que não vou limpar nem fritar os peixes…
– Não se preocupe, menina… a gente nunca pesca nada, mesmo…
– É isso… a gente só vai pescar pela diversão…
– Então vamos… só me deixa ir pegar os caniços e o samburá…
E lá foram os três rumo ao rio, passar algumas horas sem pensar nos problemas que estavam a sua volta, nem naqueles que, com certeza, apareceriam…
Cada um pensava em alguma coisa agradável… Santana sonhava em finalmente resolver o mistério das mortes e, quem sabe, conseguir uma promoção na polícia… Carneiro continuava a sonhar com seu futuro automóvel… teria que haver um jeito de conseguir comprá-lo…. dinheiro ele já tinha, o problema realmente era como manter o veículo…. mas com certeza deveria ter um jeito…. Marieta estava um pouquinho preocupada… afinal, quando o doutor se aposentasse… e pretendia aposentar-se o mais rápido possível… a saúde dos munícipes estava em suas mãos… e ela tinha medo de não conseguir cuidar de todos como estava fazendo sob a supervisão de seu mentor…
Logo chegaram às margens do rio. Estava uma tarde agradável, e Marieta, embora não estivesse disposta a limpar ou preparar qualquer pescado dos amigos, levava uma cesta com um lanche que preparara, enquanto os dois arrumavam seus apetrechos para a pescaria.
Ficaram um bom tempo nas margens do rio, anzol jogado na água, enquanto os pescadores ficavam deitados sob a fronde das árvores, curtindo aquela tarde preguiçosa… o sol caminhava lentamente pelo céu e as nuvens brancas que passeavam no firmamento davam ao mundo uma sensação de paz que a muito aqueles três não sentiam em sua alma…
Os três estavam cochilando, quando uma das varas… justamente a que estava sob os cuidados de Marieta… deu sinal de que havia fisgado alguma coisa. A moça ficou excitada com tal proeza… nunca havia pescado antes, e estava adorando a experiência… seus companheiros começaram a instrui-la sobre como proceder e, depois de alguns minutos, ela trouxe para a margem um peixe de tamanho razoável…
– Parabéns, menina… você é a primeira a pegar alguma coisa nesse trecho do rio… eu e o Santana só conseguimos pegar resfriado, mesmo…
– E como foi você quem o pegou….
-Ah… tem dó… eu trouxe o lanche para vocês… que tal se fossem cavalheiros e fizessem isso por mim?
– Touché!
– A menina deu um golpe baixo na gente!
– Ah, rapazes… por favor…
– E então, Carneiro?
– Você consegue dizer não para ela?
Marieta sorriu… ela, como Santana, detestava peixe…. mas estava divertido participar daquela pescaria… Carneiro e Santana também sorriam… o fato de nunca pegarem nada em suas pescarias era que jogavam a linha na água apenas com o peso do anzol… mas não usavam nem anzol nem isca… afinal, não queriam realmente pegar nada… só iam até aquele local para descansar. A pescaria era uma desculpa que usavam… só não contaram isso para a assistente do médico… e se divertiam com a alegria da mesma por ter conseguido sucesso em algo que, pensava ela, seu chefe tinha falhado…