Medusa… O que se pode extrair da narrativa, para servir aos nossos dias?
Em diferentes versões do mito, Medusa, mulher de extraordinária beleza, foi estuprada por Poseidon e culpada por isso. Atena condenou-a, destituindo-a de sua beleza, de seu serviço no templo e transformando-a num ser cheio de ódio e odioso… Perseu decaptou Medusa, que morreu de olhos abertos e, assim, continuou transformando em pedra quem olhasse na direção de sua face. Medusa pode representar a mulher, que até nossos dias, desde a mais remota antiguidade, é tão má-compreendida, tratada como objeto e como uma espécie de demônio que leva o homem à perdição. Quem foi, verdadeiramente, o herói da narrativa original? Perseu ou Medusa?
O “crime” de Medusa foi ser extremamente bela… A condenação da belíssima Medusa pode representar o julgamento injusto que as pessoas costumam fazer em relação às vítimas de estupro. Ela ter sido transformada em um “monstro cheio de ódio” e, consequentemente, odioso, representa o que o estupro lhe causou por dentro; destruiu sua alma! Assim, morta por dentro (“como uma pedra”) passou a transformar em pedra todo homem que dela se aproximasse. “Transformar em pedra” representa, pela análise que faço do todo, “impedir os movimentos dos homens” que se aproximavam, impedir, seja por assim dizer, qualquer nova tentativa de estupro.
Medusa morreu de olhos abertos…, para continuar vigilante! Todos que olhavam sua cabeça, com aqueles olhos abertos, eram petrificados!
Medusa, não Perseu, foi o herói_mais propriamente, a heroína_ da narrativa mitológica. Mesmo “morta” e “sem cabeça”, pois não mais conseguia pensar direito e experimentar a alegria da vida, ela continuou “transformando homens em pedras”, protegendo, deste modo, outras tantas mulheres até os dias de hoje e para sempre! Essa ação de “transformar homens em pedras perpetuamente”, representa a ressignificação da vida, como, por exemplo, o abraçar a causa da justiça à favor de vítimas de estupros e, principalmente, o ato de impedir que outros estupros sejam praticados.
De acordo com o Dicionário Mítico-Etimológico “Medusa” é um particípio presente feminino do verbo grego ?????? (médein) que significa “determinar a medida”, “estar no comando”, de maneira que, “Medusa é a que comanda, a que determina a medida das atitudes”. Etimologicamente “Medusa” está vinculada à raiz indoeuropeia “med”, que, em outras diferentes línguas, aparece com diversos significados. Porém, “o sentido geral da raiz “med” é “assumir com autoridade as medidas apropriadas”. Sendo assim, “a transformação” é necessária à toda mulher. Toda mulher precisa “ser transformada em Medusa”, isto é, desenvolver a consciência do estupro, introjetar as horríveis sensações, a dor física lancinante da agressão repentina e a dor ainda mais intensa que se aloja na alma… Deste modo, a mulher passa a proteger-se, “determinando as medidas da aproximação dos homens”, e jamais será injusta em relação à outras mulheres que, por ventura, tenham sido vítimas de estupro ou que estejam em algum tipo de relacionamento abusivo. Convém ressaltar que, “Medusa” (em Grego: ???????) se traduz como “guardiã”, “protetora”. Outra observação importante: Medusa, inicialmente, era uma belíssima sacerdotisa do Templo da DEUSA Athena, e era a mais dedicada, tão dedicada que logo se tornou a principal sacerdotisa. A beleza da jovem era tanta que não demorou muito para que se fizesse comparações entre sua beleza e a da própria DEUSA, e se dizia que a beleza de tal jovem superava a da bela DEUSA… Multidões passaram a ir ao Templo de Athena, não mais por Athena, e sim pela tal jovem, pois todos queriam ter o privilégio de admirar tão intensa beleza… A jovem, quando perseguida pelo DEUS Poseidon, correu para o Templo de Athena, para pedir-lhe proteção, e foi estuprada mesmo no interior do Templo. Embora tenha sido, o Templo de Athena, assim desonrado por Poseidon, Athena culpou a jovem. Porém, tempos depois, quando Medusa foi decapitada por Perseu, a DEUSA recolheu a sua cabeça, com a qual se transformava homens em pedra, e incrustou-a em seu próprio escudo, assim eternizando a mais dedicada sacerdotisa que tivera e levando-a para o Olímpo, a Morada dos DEUSES, reconhecendo-a, de certo modo, tão divina quanto ela mesma.
Alguém poderá dizer: “Na versão original do mito” não há o estupro e não há outros detalhes contidos no presente texto.”. A questão é que, isso de “mito original” não procede, pois um mito, por sua natureza, não possui um autor específico, visto que se iniciam mediante transmissão oral e pertencem a um contexto de grupo, a toda uma tribo ou a um povo, e assim, se desenvolve, adquirindo novos formatos para atender a diferentes realidades. Um mito, por ter esta natureza, coletiva, se mantém vivo pelos séculos afora. O mito sobre Medusa foi recontado por diferentes escritores antigos, entre os gregos e romanos. O mais antigo registo conhecido sobre a história da Medusa e das Górgonas faz parte da Teogonia de Hesíodo, a versão que fala sobre as três irmãs, Sthenno, Euryale e Medusa, que eram as crianças de Phorcys e Ceto e viviam “para além do famoso Oceano, à beira do mundo”, e essa versão, que é a mais antiga de que se tem informações, nos dá a entender que havia outras versões, que fora transmitida oralmente em épocas bem remotas.
Reputo: todo mito é uma construção coletiva que perpassa os séculos justamente por essa característica.
Depois de Hesíodo, a mais famosa versão é a de Ovídio. É de suma importância entender que obras de natureza mitológica não possuem o caráter rígido de obras científicas e filosóficas. Outros ainda descreveram o mito. De qualquer forma, para respeitar a natureza coletiva e atemporal de um mito, convém fazer a leitura mediante as diversas versões, buscando aqueles elementos que se destacam e perduram, e buscar “costurar as versões” nos pontos principais.
Obs.: o presente texto, que foi publicado, em parte, no meu primeiro livro, constará do que estarei publicando daqui a algum tempo, fazendo “leitura analítica” _como faziam antigos psicanalistas, que “psicanalizavam” obras literárias, pinturas e tantas outras expressões culturais, para entender, o máximo possível, o que se passava na mente do autor de modo consciente e inconsciente, e para transpor à contemporaneidade, objetivando sua utilidade.
Em seu aniversário de 70 anos _como cita Trilling (1950)_ Freud disse: “Os poetas e filósofos descobriram antes de mim o inconsciente; o que eu descobri foi o método científico pelo qual o inconsciente pode ser estudado”. Ele admirava os insights dos grandes escritores e usava-os como fonte de criatividade. (Outeiral, 1991).
Autor:
Cesar Tólmi – Filósofo, psicanalista, jornalista, pós-graduando em Neurociência Clínica e MBA de Recursos Humanos, Coaching e Mentoring, artista plástico, escritor e idealizador da Neuropsiquiatria Analítica, integrada aos campos clínico, forense, jurídico e social.
E-mail: cesartolmi.contato@gmail.com