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domingo, 8 de setembro de 2024

58 – Nem tudo é o que parece…

– Não entendo porque o senhor me chamou aqui, seu Zacarias…

– É que eu preciso conversar com a senhora, dona Alice…

– Sobre o que?…

– Esse é o problema, não é? Sobre o que um matuto do sertão quer falar com a professora….

– Não foi isso o que eu quis dizer… não queria ofender…

– Não se preocupe, dona Alice…  eu te entendo…

– Mas…

– Mas tem algumas coisas sobre as quais precisamos conversar….

– Por que será que tenho a impressão de que não vou gostar dessa conversa?…

– Acho que é porque a senhora não vai gostar, mesmo…

– Seu Zacarias, poderia ser mais claro, por favor?

– Vou tentar… a senhora está em nosso seio a quanto tempo?

– Uns dois, três anos… mas o senhor sabe disso…

– Sim, eu sei… a senhora veio para assumir a escola, no lugar da doma Marta, que Deus a tenha…

– Sim, isso mesmo… eu trabalhava na Capital e chegou uma hora que eu precisava da paz que o campo nos dá…

– Mas descobriu que o campo não é tão pacífico, assim…

– Sinceramente? Mesmo com os últimos percalços que estamos passando, a vida aqui ainda é melhor que na Capital…

– O Rio de Janeiro?

– Não estou falando da Capital do País, e sim do Estado…

– Entendo…

– Mas por que essas perguntas, seu Zacarias?

– Dona Alice, a senhora sabe que eu, assim como  a senhora, costumo pesquisar tudo o que ocorre a nossa volta…

– Sei… boi-tatá, mula sem cabeça…

– A melhor forma de você passar despercebida em um lugar é fazer com que as pessoas não acreditem em sua existência, dona Alice…

– Não entendi…

– Eu explico… é claro que a senhora não tem como saber, mas antes de sua chegada neste arraial, a vida por aqui era calma e tranquila. Quase não havia manifestações paranormais…

– Para… o que?

– Eu sei que a senhora me entendeu… sua surpresa é um matuto falando dessa forma…

– Sim, confesso que estou surpresa… mas… e daí?

– Daí que já faz algum tempo que notei alguns comportamentos meio fora do normal na senhora… 

– E…?

– E fui investigar… eu sou um cabra xereta… se alguma coisa me parece estranha, vou verificar…

– Descobriu alguma coisa… estranha?

– Por enquanto, não… mas só quero que a senhora saiba que estou te investigando. Porque eu não gosto muito quando não consigo entender o que se passa a minha volta…

– Porque será que tenho a impressão que o senhor não é exatamente quem as pessoas pensam que é, na verdade? 

– Porque é exatamente o que sinto em relação à senhora…

Alice suspira profundamente, com ar de enfado…

– Seu Zacarias, se não se importa, tenho que ir à Escola… daqui a pouco tenho que dar minhas aulas….

– A m?tvi chodia medzi živými, akoby boli tiež….

Alice se volta, como um relâmpago, para a direção de Zacarias.

– O que o senhor disse?

– Ora, tenho certeza de que a senhora me entendeu perfeitamente…

O semblante de Alice estava lívido, e seus olhos, daquele azul tranquilo que parecia o céu de primavera, tornou-se negro como a noite sem lua.  Com uma voz gélida, a moça dirigiu-se uma ultima vez paras Zacarias, à guisa de despedida… 

– Muito cuidado com o que diz e pensa, meu caro… algumas vezes acabamos mordendo algo que não é para nossos dentes…

E saiu pela alameda, sem voltar-se novamente. Zacarias ficou parado, sentado no banco da praça onde tivera aquela conversa com a professora. Sim, Juvêncio tinha razão, alguma coisa naquela moça era estranha… e ele tinha que descobrir o que era… ele espera estar enganado, mas a reação dela quando o ouviu dizer a frase sobre mortos caminhando entre os vivos, como se eles também o fossem, deixou-o mais certo de que suas suspeitas podiam estar corretas… ele queria estar enganado… mas tudo indicava que a professora era uma upír… provavelmente era ela a Mulher de Branco que ultimamente aterrorizava a região… mas ainda era cedo para partir para essas conclusões…

Alice desceu a rua ainda nervosa com a conversa… quem aquele matuto ignorante pensava que era, para falar com ele naquele tom? Ele era um sujeito analfabeto, ignorante… como ousava falar com ela daquela maneira? Mas… a forma como ele se portou não condizia com um homem do sertão… na verdade, parecia mais uma pessoa que havia viajado pelo mundo, uma pessoa que tinha estudado em algum grande centro… e é isso que ela não entendia… a pronúncia dele, quando lhe falou em eslovaco, era perfeita, era como se ele tivesse morado algum tempo naquela terra… como isso poderia ser possível? E como ele poderia saber que ela viera daquela região? Sim, ela era eslovaca, porém nunca dissera a ninguém sobre sua origem… nem mesmo o doutor Alberto, com quem mantinha uma relação de quase-namoro… nunca havia dito sim para o rapaz, apenas se insinuava para este e, na hora “h”, pulava fora, deixando- o desconcertado com suas ações… nem mesmo ele tinha noção de suas origens… e aquele matuto… como ele descobriu?

Alice parou na pousada de dona Monica e pediu um café com leite, acompanhado por uma broa de milho. Precisava se acalmar, e só conseguia fazer isso comendo… o engraçado é que ela poderia comer a quantidade de comida que quisesse que não engordava nem um grama em seu peso. Era esbelta. Bom, enquanto consumia seu pedido, sua raiva foi se dissipando. Passados alguns momentos, nem se lembrava mais da conversa que tiveras com o senhor Zacarias… seu único pensamento agora eram seus alunos e as lições que lhes ministraria, para prepará-los para o futuro, pois tudo o que contava para seus alunos era aprender o máximo possível para um dia, quem sabe, poderem sair daquele mundão sem fim e crescerem socialmente na Cidade Grande…

Pagou sua conta, arrumou suas coisas e seguiu em direção à escola. Tudo o que havia conversado com Zacarias simplesmente desapareceu de sua mente. Tudo o que sabia agora é que tinha seus alunos para cuidar e sua aula para ministrar… e mais tarde, depois que concluísse seus afazeres, tinha um encontro marcado com o doutor Alberto, que a havia convidado para passear pela orla do rio, para juntos apreciarem o por do sol…

59 – Suspeitas…

– Bom dia, delegado…

– Seu Zacarias… que bons ventos o trazem aqui? 

– Na verdade, eu vim a pedido do doutor Vicente, seu colega…

– Bom, então perdeu a viagem… ele não se encontra, no momento…

– Eu sei… na verdade, vim conversar com o senhor…

– Desculpa, seu Zacarias… agora embolou tudo… o senhor veio falar com o doutor Vicente ou comigo?

– Com o senhor…

– A pedido de meu colega…

– Isso…

– Continuo não entendendo…

– Bom, o senhor e o doutor Alberto presenciaram algumas… coisas estranhas… no necrotério, não é mesmo?

– Desculpa… continuo não entendendo…

– Doutor Duarte… o senhor sabe que eu costumo coletar todos os fatos estranhos que acontecem em nossa região…

– Sim, eu sei… tudo aquilo que acontece por aqui e não tem uma explicação lógica, o senhor vai se inteirar para servir de referência no futuro…

– Sim… algumas pessoas não entendem assim… algumas até me chamam de “feiticeiro”, pelas costas…

– E o senhor é?…

– Não, claro que não… sou apenas um curioso que procura conhecer aquilo que pode ser útil para nossa comunidade…

– E…?

– E aí é que está, delegado… depois de muito pensar, de pois de muito pesquisar, cheguei a uma conclusão…

– Pesquisar o que, seu Zacarias?

– Principalmente os últimos acontecimentos… o senhor há de convir comigo que ultimamente as coisas andam um pouco fora dos trilhos….

– Já estamos conseguindo realinhar o trem, não se preocupe…

– Não, delegado, não estão realinhando nada… muito longe disso…

– Desculpe…?

– Seu delegado, o que estamos enfrentado, de verdade, é uma “upír”…

– Uma o que? Que diabos é isso?

– Um vampiro, seu delegado… um espírito maligno que se manifesta através de uma pessoa e vem atacar os incautos…

– Ah, não…pelo amor de Deus… ataques sobrenaturais? Isso não existe, seu Zacarias…

– O senhor presenciou algumas manifestações e não quer acreditar que isso exista… Duarte…estou falando sério…

– Tá… vamos dizer que eu acreditasse nessa patacoada… e como a gente iria encontrar esse… vampiro?

– Na verdade, acho que já sei quem é…

– Sério? E seria…

– A professora Alice…

Ao ouvir o nome da professora, Duarte começa a gargalhar. Ri tanto que quase se sufoca. Zacarias apenas fica olhando para o homem, esperando que a sua reação passe… depois de algum tempo, Duarte se recompõe. Olha sério para Zacarias….

– Seu Zacarias, o senhor está brincando com coisas sérias…

– Eu até que gostaria de estar, juro… 

– Como é que o senhor…. a professora… uma pessoa tão bondosa… tão preocupada com seus alunos… caridosa, não pode ver ninguém passando necessidade que já vai ajudar, sem se preocupar com quem quer que seja… 

– Eu sei disso tudo…

– Além disso, é uma cristã fervorosa… não perde uma missa, nem durante a semana…

– E…?

– Que eu saiba, pelas histórias que ouço contar sobre esses seres, ele não podem nem entrar em um local sagrado…

– E…? 

– E também só andam à noite… o sol os destrói…

– Isso é o que o povo conta, Duarte… mas não é bem assim… 

– Não entendi…

– Sim, as pessoas dizem que os vampiros são seres malignos, que desejam apenas a destruição da humanidade… 

– E não é assim…?

– Mais ou menos… o senhor sabe que trabalho para um criador de gado…

– Sim…

– E que cuidamos das reses desde que nascem até que estejam prontas para o abate…

– Sim… 

– E, nesse meio tempo, procuramos deixar os animais o mais confortáveis possível…

– Mas quando chega a hora, simplesmente os abatemos… simples assim…

– Sim…

– Pois bem, para um vampiro, nós somos o gado… enquanto não necessita tomar nossa vida para se alimentar, vai nos tratar com toda deferência… mas quando chegar a hora do abate…

– Você está louco, Zacarias…  me desculpe, mas o que está me dizendo não faz o menor sentido….

– O que não faz sentido, Duarte?

– Nada do que você disse faz sentido… como é que você acha que a professora… que ela…

– Duarte, pense um pouco… você trabalha nessa região a quanto tempo?

– Uns dez anos, mais ou menos…

– E a quanto tempo começaram essas… manifestações?

– Eu diria que uns dois anos… um pouco mais, um pouco menos…

– Sim, é isso mesmo…. e quem chegou aqui mais ou menos nesse período?

– Várias pessoas… gente chega e parte a toda hora…

– Concordo contigo… mas quem chegou nesse meio tempo e permanece conosco até hoje?

Duarte fica calado por alguns minutos. Depois fala, pausadamente, como se tivesse perdido uma batalha…

– A professora…

– Sim, Duarte… a professora…

– Mas ela é uma pessoa normal… trabalha durante o dia, come as mesmas coisas que a gente…

– Eu nunca disse que ela não era normal… eu disse que ela era uma vampira…

– E como você explica que ela assista a missa, tome a comunhão?

– E porque ela não poderia fazer isso?

– Porque seria um espírito impuro, um ser maligno… e não poderia colocar os pés dentro de uma igreja…

– Sabe que isso, na realidade, não procede…

– Como assim?

– Esses seres podem entrar em uma igreja normalmente…

– Não foi isso que aprendi…

– Eu sei… e isso nos passa uma falsa ilusão de segurança… em todo caso, normalmente eles não se manifestam dentro de uma igreja… não ,porque fiquem inibidos, mas sim porque você não costuma andar com seu prato na mão em todo canto, não é mesmo?

Andrade ia retrucar, mas ficou sem argumentos…dando de ombros, decidiu aceitar o que Zacarias falava como se verdade fosse, não porque acreditasse piamente… mas simplesmente porque não conseguia pensar em nada para contradizer os argumentos de seu interlocutor…

– Tudo bem… mas você tem provas de tudo isso que me disse?

– Claro que não… e, na verdade, suspeito que Alice nem sabe que é uma vampira…

– Xi… agora entornou o caldo de vez… como assim, “ela não sabe”…?

– É meio complicado… depois te explico melhor… mas agora preciso de sua ajuda para investigar algumas coisas que poderão confirmar ou não minhas suspeitas…

Andrade dá um longo suspiro, resignado…

– Tudo bem… vamos lá, então…

E assim, Zacarias começou a passar algumas instruções para o delegado que ora ouvia com atenção, ora ria a bandeiras despregadas, mas acompanhou o raciocínio de seu interlocutor até o fim. Quando Zacarias se retirou de seu escritório, Andrade sentou-se em sua cadeira, com ar de cansado, pegou um copo, encheu com uma boa dose de café (aposto que pensaram que ele ia tomar uma cachaça) e enquanto sorvia sua bebida, ficou olhando o infinito, com um ar de cachorro perdido…

Autora:

Tania Miranda

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