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quinta-feira, 21 de novembro de 2024

A repaginação das coisas

Até os 13 anos morei na rua A, numa vila de 5 ruas no Tatuapé. Seus nomes eram A, B, C, D e E. Era fácil saber onde eu estava e para que lado ficava a rua C, por exemplo. Aí os vereadores resolveram homenagear uns amigos, alteraram os nomes daquelas ruas e ninguém mais se localizou. O elevado Presidente Costa e Silva mudou de nome, ou melhor, de presidente. Agora ele se chama João Goulart, mas neste caso o problema é menor, porque independente do nome do presidente, todos sabem que aquilo é o Minhocão.

Li no jornal que certo dia um empresário foi baleado em seu carro. Um taxista presenciou a cena, ligou para a polícia e reportou o crime na Ponte Cidade Jardim. A atendente não localizou o logradouro porque outro vereador mudou o nome para Engenheiro Roberto Zúccolo, único dado que constava no cadastro da polícia. Hoje, quem passa por lá vê os 2 nomes na placa.

O mercado imobiliário é pródigo em alterar nomes de bairros e regiões, sempre com o intuito de valorizar a venda. Nos anos 1970, quando o Morumbi ganhou status de morar bem, para a propaganda imobiliária o bairro começa após a Marginal Pinheiros e vai até a divisa com Campo Limpo Paulista. Tudo é Morumbi. Para diferenciar, criaram Portal do Morumbi, Altos do Morumbi, Morumbi Nobre etc. Uberabinha (alguém lembra?) também mudou de nome. 

– Você ainda mora lé em Uberabinha? 

– Não, aquilo era bairro de pobre. Agora eu moro em Moema. 

Chique, não acham? E o nem precisou mudar de casa! Há alguns anos surgiu Nova Perdizes. O que? Nova Perdizes? É Barra Funda, pô! Mas Nova Perdizes soa melhor. Morei num prédio que tinha churrasqueiras nas sacadas, novidade para a época. Mudaram o nome para Varanda Gourmet e o imóvel valorizou 15%. A Sala de Ginástica virou Fitness. Nomes mais glamourosos.

E as distâncias? E o tempo de percurso? Próximo a… é uma distância que varia de cem metros a oito quilómetros. Vista para o mar? Talvez com um bom binóculo. Quando lançaram Alphaville, a propaganda dizia “a oito minutos da Faria Lima”. Não falaram que era de helicóptero, claro.

Nos botecos, você pede cachaça com torresmo, mas nos “points” é Cútis Suína flambada com destilado de cana. Mais chique e caro, mas é só o nome que muda. Cachaceiro é pejorativo, mas Cachaçaria é estabelecimento requintado. Orientador de carreira agora se chama Coach, o costureiro é estilista e o cabeleireiro é hair stylist. Quem depila a testa virou desingner de sobrancelhas. Claro que o serviço custa muito mais.

Outro dia precisei trocar a vela do filtro de água. Fui na loja de filtros e descobri que o que eu queria era um “elemento filtrante”. Antigamente meu pai tirava a vela do Filtro Salus, lavava com água e açúcar e reutilizava várias vezes. Ninguém consegue lavar o elemento filtrante. Tem de trocar mesmo e é bem mais caro. 

Lembram do Fusca? Qualquer um consertava Fusca. Na Moóca, o mecânico Chicão adaptava até correia de enceradeira e mangueira de aspirador de pó. Meu carro parou na via dos Imigrantes por causa de um microchip de 2,5 X 2,5 cm por 3 mm de espessura. Apagou de vez e eu morri com R$ 1.300,00. Carro de Fórmula 1 não têm mais motor. O nome é Conjunto Propulsor e só um PhD em física quântica consegue mexer naquilo. O Fusca saiu de linha, ninguém mais tem enceradeira e o aspirador de pó foi substituído por um robô. O mecânico Chicão da Moóca já era!

Engrandecer currículo é marketing pessoal, dar “up” na carreira. Cirurgia plástica no rosto é harmonização facial, usar roupas novas é repaginar e por aí vai. Quem vive no celular palpitando na vida  alheia, agregando nenhum valor, caso tenha um bom número de trouxas, desculpe, Seguidores, pode ganhar muita grana como Influenciador Digital. A maioria não entende nada do que fala, mas seus seguidores também não. Um finge que ensina, outro finge que aprende. 

No show business, os nomes também mudaram. O cantor (ou crooner), virou vocalista, organista é tecladista, conjunto musical é banda e baterista é percussionista. São nomes bem mais pomposos, mesmo que não cantem ou toquem porcaria nenhuma. É muita frescura!

Nossas vidas são afetadas por esses nomes, mas há quem saiba tirar proveito disso. É o caso do Joca, o João Carlos, um modesto porém antenado auxiliar de faxina do Habibs que mora num quarto-sala-cozinha conjugado sobre um bar de esquina no morro da Freguesia do Ó, bairro da zona norte de São Paulo. Ele foi buscar Alice para irem a uma festa e o pai da moça o recebeu na varanda do belíssimo sobrado no Alto de Pinheiros para ver com quem a filha estava saindo.

– Boa noite meu jovem. Quero saber onde você mora, onde trabalha e qual é sua profissão. 

– Sou Junior Chief of Facility Officer num conglomerado gastronômico. Moro num studio penthouse, nos alpes da Distinta Clientela da Quarta Vogal.

O pai da Alice ficou impressionado com o rapaz e feliz com a escolha da filha. Nada como um bom nome para aumentar prestígio!

Laerte Temple
Laerte Temple
Administrador, advogado, mestre, doutor, professor universitário aposentado. Autor de Humor na Quarentena (Kindle) e Todos a Bordo (Kindle)

15 COMENTÁRIOS

  1. Simplesmente adoro e me divirto muito com suas publicações. São sensacionais. Retrata o cotidiano com humor. Parabéns primo,. sou sua fã.

  2. ?????
    Aconteceu com a Rodovia dos Trabalhadores, que homenageava uma maioria invisível e virou Ayrton Senna … de muito maior prestígio. Parabens !!!

  3. Depois de uma certa idade fica difícil acompanhar essas mudanças, minha avó fez muitos vestidos de bolinhas pra mim, eu adoro, mas agora só encontro de poá e quando queríamos comprar carne íamos no açougueiro da esquina……..sumiu…..só tem casa de carnes ????????

  4. Muitas vezes é só uma mudança de nome que “atualiza” um produto ou serviço para a linguagem de hoje em dia, pois o idioma é dinâmico. Outras vezes é um “avanço” tecnológico que substitui o simples pelo sofisticado. E nós temos de viver com um “tradutor simultâneo”.

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