Ontem, o Rio de Janeiro viveu mais um capítulo de sua tragédia cíclica: o caos a céu aberto, o medo em cada esquina e a morte transformada em estatística. Não há metáfora que explique a dimensão do desastre. Foi uma operação desastrosa não apenas pelos corpos caídos, mas pela soma de erros estratégicos, políticos e morais que a sustentaram. E, como se não bastasse, pela mentira oficial que se tentou vender ao público antes mesmo de o sangue secar no asfalto.
O governador — que pela manhã tentou posar de comandante firme e responsável — anunciou em público, diante das câmeras e manchetes, que havia pedido de apoio ao governo federal. Horas depois, insisto pela ausência de qualquer registro ou comprovação formal dessa solicitação, admitido que não foi feita tal comunicação. As desculpas, porém, foram feitas ao telefone, em privado, longe do mesmo público que ouviu a mentira inicial. Uma mentira lançada assim, diante de milhões, é difícil de ser revertida; ela se espalha, molda percepções, inflama o imaginário popular e se torna combustível para o medo coletivo.
Mais do que um erro de comunicação, trata-se de uso político calculado de uma narrativa que se mistura profundamente com as emoções das pessoas — despertando medo, paixão e ódio. Esses sentimentos inflamam o debate, dividem a sociedade, e transformam a dor em arma retórica. Ao se colocar como um líder “sem apoio”, isolado para combater o crime, desvia-se da responsabilidade e se cria um bode expiatório, reforçando a política do medo.
Desde 2018, o estado do Rio de Janeiro é governado por gestões alinhadas à extrema direita, o que fez da retórica da força um programa político. Armas, operações e confronto mudaram de direção, enquanto as políticas sociais e a inteligência policial foram relegadas ao esquecimento. Ontem, quando o caos emergiu nas ruas, ficou claro o resultado dessa escolha: um Estado que confunde repressão com controle e que se orgulha de batalhas sempre perdidas.
No rastro da operação mais letal da história recente do estado, moradores do Complexo da Penha – uma região das atacadas – encontraram pelo menos 72 corpos em uma área de mata (pelo menos até o momento em que escrevo este artigo), não contabilizados na contagem oficial de 64 mortos divulgados pelo governo até então. Esses corpos foram levados pelos próprios moradores à Praça São Lucas, no centro da comunidade, para o reconhecimento de familiares e aguardam perícia para confirmar a relação com a operação. Considerando essas vítimas extras, o número total pode ultrapassar 120, ampliando a tragédia para além dos números oficiais.
Enquanto o Comando Vermelho já utiliza drones para bombardear rivais e desafiar o poder público, o Estado oficial era de forma improvisada, sem cooperação com o governo federal e sem estrutura de inteligência que pudesse evitar tal banho de sangue. Falta diálogo, planejamento e vontade política para entender que segurança se constrói com informação e presença social, não com arrogância e pólvora.
O equilíbrio humano é extremo: quatro policiais tombaram em serviço, e pelo menos oito moradores inocentes foram assassinados, dentre os quais muitos recém-encontrados pela própria comunidade. Além dos mortos, consideravelmente feridos físicos e invisíveis — aqueles marcados pelo trauma, pela ansiedade, pelo medo de ter uma casa transformada no campo de guerra. O dano à saúde física e mental da população da periferia é incalculável, e não se cura com notas oficiais.
Há ainda um subtexto inquietante: a suspeita de que essa operação, em vez de desmantelar o crime, pode ter favorecido a milícia. Ao desarticular facções rivais, a polícia abriria espaço para que grupos paramilitares – com menor visibilidade e maior controle territorial – expandissem seu domínio. Assim, o poder apenas migra, mantendo o controle social e o medo, porém sob novos núcleos e uniformes. A ausência efetiva do Estado continua, enquanto a população permanece refém dessa lógica de necropolítica, sobre a qual o sociólogo Achille Mbembe alerta: o Estado determina quem pode viver e quem deve morrer.
Os pobres, os pretos, os favelados são sempre os corpos nacionais, os “alvos legítimos” em uma guerra desigual e não declarada. Enquanto isso, ainda que governadas pela necropolítica, as favelas são administradas pela biopolítica: vidas sujeitas ao controle e à disciplina. A cidade partida é laboratório de experimentos de poder, onde se testam armas, discursos e justificativas — tudo sob o silêncio cúmplice dos gabinetes refrigerados.
Além das mortes e do medo, a operação prendeu o cotidiano: escolas e universidades fechavam suas portas, suspendendo aulas. Crianças e jovens, já bastante fragilizados, sofreram não apenas a perda pedagógica, mas o impacto psicológico de crescer em um ambiente em que a violência e o terror se repetem. O trauma invisível mina a esperança e o futuro. Quarenta anos de “guerra às drogas” ensinaram-nos que repetir as mesmas coisas, do mesmo modo, não trouxe resultados diferentes — e a conta paga é sempre a das mais vítimas.
O dia amanheceu com sirenes e velas, múltiplas lágrimas e mais corpos enfileirados nas praças. O Rio, mais uma vez, aprendeu que suas tragédias são administradas com eficiência burocrática: mentira em público, desculpas em privado; morte em números, silêncio no poder. Nada se move além do desgaste do que deveria ser vida, dignidade e esperança.
E amanhã, quando as luzes dos helicópteros se apagarem, persistirá o mesmo Rio — dilacerado, sangrando e cansado de ser laboratório da morte.

