Domingo de manhã, céu de brigadeiro, um sol radiante anunciando promessas de aventura. Eu e Flávio, amigo de longa data, estávamos prontos para partir rumo ao Paraguai. As motos reluzentes, mochilas firmemente presas aos bagageiros, corações acelerados pelo misto de empolgação e despedida. Nossas namoradas, entre beijos e abraços, deixaram em nossos ouvidos a melodia de um “tomem cuidado”, que ecoava enquanto tomávamos a estrada.
A paisagem desfilava em cores vivas a cada quilômetro vencido, a mata exuberante desenhava um mosaico verde e com algumas flores à beira do asfalto. O roteiro previa tranquilidade, mas a estrada, como sempre, guarda seus imprevistos. E eis que surge, inusitada, uma blitz policial num trecho improvável. “Parem!” – paramos! “Desliguem as motos!” – obedecemos. “Abram as mochilas!” – abrimos. Documentos conferidos, bagagens revistadas, seguimos viagem aliviados, mas com o susto pulsando ainda no peito.
No próximo posto, uma pausa estratégica: café, pão na chapa e um gole de respiro para domar a adrenalina. Um pit stop que serenou o espírito e preparou-nos para o restante do dia. De volta à estrada, guiamos até o sol se despir lentamente atrás das árvores, tingindo o céu em tons de fogo e ouro. Paramos as motos, sentamo-nos sobre elas e contemplamos o espetáculo silencioso do sol se despedindo, cedendo o palco à lua que, majestosa, assumia seu posto entre as estrelas.
A noite caiu, e com ela, a dúvida: onde dormir? Voltamos para as motos, agora rodando devagar, atentos a qualquer sinal de abrigo. Foi quando avistamos uma luz solitária, alguns metros adiante. Seguimos em direção à promessa de refúgio. O ronco das motos anunciou nossa chegada diante de uma casa branca, singela, com janelas azuis que pareciam sorrir na penumbra.
O senhor José, mestiço de pele curtida pelo tempo e olhos brilhantes de hospitalidade, recebeu-nos com gentileza. A conversa fluiu fácil, regada por uma bebida local de sabor familiar, talvez uma prima da nossa cachaça, quem sabe? O tempo escorria entre risos e histórias, até que, com a franqueza dos homens do campo, José anunciou: não havia espaço na casa, mas o paiol estava disponível. Olhei para Flávio, que ponderou a segurança das motos, arrancando de José uma gargalhada: “Aqui é o fim do mundo, quem haveria de roubar suas motos?” Rimos juntos e, com bagagens e máquinas, acomodamo-nos no paiol.
O silêncio da noite era denso, povoado por piados de corujas, sapos e grilos, cada um entoando seu canto. O sono chegou, profundo, embalado pela forte bebida, pelo cansaço e pela promessa de novas aventuras ao amanhecer. Mas, em meio à escuridão, algo roçou meu nariz. Meio atordoado, abri os olhos e vi, incrédulo, um rato branco gigantesco diante de mim. E o mais surpreendente: ele falou!
“Vocês estão invadindo propriedade alheia”, disse em tom autoritário, a voz soando com a gravidade dos que detêm poder ancestral. Tentei argumentar, explicando que nosso anfitrião, senhor José, autorizara nossa permanência. O rato ergueu-se, inflando o peito: “Ele manda na casa dele. Aqui, no paiol, eu é que mando. Vou consultar o conselho da minha comunidade, para decidir se permitimos que vocês passem a noite aqui.”
A cena era tão surreal que duvidei estar acordado, mas o brilho nos olhos do rato e o sussurro de pés ao redor denunciavam: havia ali um exército de roedores enfurecidos e com os seus dentes afiados à amostra. Seguramente estavam de prontidão e alertas, atentos ao veredicto do seu líder. Meio sonâmbulo, tomado pelo pânico e pela incredulidade, sacudi Flávio. “Acorda! Vamos embora daqui…”
Saímos às pressas, tropeçando nas próprias pernas, apanhando as mochilas como quem foge de um pesadelo insólito. Lá fora, o ar fresco da madrugada nos trouxe de volta à realidade, ou quase. Ligamos nossas motos e voltamos as belezas da estrada, iluminada pela lua, que parecia nos convidar a seguir adiante, deixando para trás o reino dos ratos soberanos e suas leis inusitadas.
No final, seguimos viagem, com a certeza de que algumas histórias, absurdas demais para serem inventadas, só acontecem mesmo a quem se atreve a pegar a estrada sem rumo certo – e com disposição para negociar até com os habitantes mais improváveis do caminho.