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sexta-feira, 27 de setembro de 2024

A Gula nossa de cada dia

No livro Comer, Rezar e Amar, Elizabeth Gilbert relata que conseguiu tudo o que sonhou, mas após o divórcio, passou por depressão, sofreu e teve um novo amor fracassado. Demitiu-se do emprego, livrou-se dos bens materiais e saiu mundo afora para reexaminar a vida, buscar a felicidade e parar de viver sob padrões e valores pré-determinados. O best seller virou filme. 

A vida de Carla Caulim, a Cacau bem que podia ser contada em livro e filme, mas com enfoque diferente. O título talvez fosse Comer, Ingerir e se Alimentar. Glutona inveterada, ateia ou não (indecisa) e narcisista, não reza e ama apenas a si mesma, porém com ressalvas, pois mora sozinha e mesmo assim já fugiu de casa. É viciada em chocolate, especialmente o BIS, aquele biscoito recoberto que ninguém consegue comer um só. Ela come BIS no café da manhã, almoço e jantar, além de lanches e tira gosto. Come BIS o dia todo.

Sua carteira, que também funciona como espelho, tem apenas o próprio retrato. Só se pesa numa balança desregulada que nunca passa de 60 quilos. Frequenta academia seis dias por semana para se exibir e aos domingos desfila no Parque Vila Lobos com bicicleta elétrica.

Cacau segue toda moda alimentar que surge, mas sem resultados. A cada duas semanas de dieta, perde no máximo 15 dias. Por mais que coma compulsivamente dezenas de BIS ao dia, mantém forma roliça aceitável, embora a única peça com mais de cinco anos que ainda lhe sirva sejam os brincos. Consultou dezenas de nutricionistas e mudou os hábitos alimentares inúmeras vezes: shakes, sorvetes, pudins, bombas de chocolate, mas o vício pelo BIS não a abandona.

Seu caso foi mostrado num programa fitness da TV e chamou a atenção da Lacta, fabricante do BIS, que a convidou para visitar as instalações. Ela se encantou com os novos sabores, mas passou mal com a versão diet e foi internada com gula seletiva aguda.

Abu Zhow, o gerente de marketing, não saiu de perto dela nos três dias em que steve no sofisticado hospital. Dieta hipossódica, sucos vegetais e sobremesas sem graça provocaram arritmia cardíaca, insuficiência renal, conjuntivite e alteraram o seu humor. A glicemia se manteve dentro dos padrões, intrigando os médicos. Cacau recuperou-se graças às dúzias de BIS que o gerente trazia escondido ao hospital.

O episódio rendeu duas importantes mudanças em sua vida: Cacau e Abu Zhou começaram a namorar e ela recebeu oferta de trabalho na empresa, como piloto de provas dos novos sabores do BIS, exceto o diet, por ordem médica. O namoro mudou suas vidas, com leves adaptações. Abu Zhou aceitou bem sua paixão pelo BIS. Afinal, é gerente do produto ela sua maior garota propaganda. Cacau se adaptou às duas paixões do amado: futebol e religião. Ela o acompanha no estádio e frequenta o culto. Só se incomodou quando o bispo criticou os deslises dos fiéis, especialmente a gula. Nunca imaginou que sua paixão pelo BIS fosse pecado.

Graças às suas dicas e a repercussão, as vendas do BIS atingiram níveis impressionantes e os lucros dispararam. A empresa assinou contrato de naming rights para patrocinar a arena do clube, pois as pesquisas indicaram que o patrocínio, mais as atuação de Cacau, levarão a participação do produto no mercado a patamares nunca antes imaginados.

A fábrica e o clube programaram grande festa para a assinatura do contrato e a inauguração do novo nome da aren. Futebol, show musical, muita pompa e montanhas de chocolate BIS grátis para os convidados. Contudo, o foco das atenções era Cacau, sempre fotografada ingerindo o famoso biscoito.

Comeu tanto BIS que travou a epiglote, a estrutura cartilaginosa que leva o alimento ao sistema digestório e impede sua entrada no sistema respiratório. Faltou-lhe o ar e ela desmaiou. Levada ao hospital, foi entubada e colocada em coma induzido. No dia seguinte, despertou e identificou três pessoas no quarto: o namorado, o médico e o pastor chato. O namorado segurava sua mão e o pastor criticava o pecado da gula, causador dos seus males. Vendo-a despertar, o médico interrompeu o pastor e comentou:

  • Você não precisava ter passado por isso. Quando percebeu que a epiglote estava travando, bastava ir ao banheiro, meter o dedo na boca e vomitar. Você mesma desobstruiria o canal e não teria desmaiado.
  • Doutor, se coubesse um dedinho na minha boca, teria comido outro BIS!
Laerte Temple
Laerte Temple
Administrador, advogado, mestre, doutor, professor universitário aposentado. Autor de Humor na Quarentena (Kindle) e Todos a Bordo (Kindle)

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