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quarta-feira, 13 de novembro de 2024

A economia informal e as vítimas da sociedade

Toda cidade que se preze tem alguns anacronismos sociais: boca de fumo; zona de baixo meretrício (boca do lixo, para os abestados); boca do luxo (mercadoria menos rodada e em melhor estado, para os abastados), e a Feira do Rolo, espaço escondido que todos conhecem,  onde se vendem produtos de procedência e qualidade duvidosas.

Castelo, 63 anos, foi demitido às vésperas da aposentadoria. Cansou de procurar emprego e decidiu se tornar empreendedor. Chega de ser passado para trás, ter chefes incompetentes e trabalhar para patrões boçais e soberanos. Possui excelente formação e muita experiência, mas ainda não decidiu qual o melhor negócio para começar. Resolveu visitar a tal Feira do Rolo para buscar inspiração. Não foi difícil descobrir o endereço.

O local é um beco sem saída. Os vendedores trabalham em silêncio, olhando para os lados e ressabiados. Os clientes transitam por todo tipo de produtos: roupas, ferramentas, antiguidades, eletrônicos, perfumes e cigarros, tudo no chão, sobre lonas, ou então em pequenas mesas articuladas e fáceis de desmontar. 

Castelo trombou com dois pirralhos, livrou-se deles e de repente, alguém gritou: “O Rapa!”. Descobriu que o tal beco sem saída tem muitas saídas. Vendedores e produtos sumiram em segundos. Restou apenas a mulher do cafezinho, bolos e guloseimas. Os fiscais circularam, não constataram irregularidades, receberam café grátis e um envelope pardo, depois se mandaram. É sempre assim: fingem fiscalizar, constatam que está tudo em ordem, tomam cafezinho, vão embora e tudo volta ao normal.

O burburinho ressurgiu. Quem conhece o esquema, não se abala, mas Castelo maravilhou-se! É isso o que vou fazer, decidiu. Abro uma Micro Empresa, compro a mesinha articulável e começo a vender. Só falta decidir os produtos.

Parou na banca, pediu café com uma fatia de bolo e começou a comentar seus planos e dúvidas com a vendedora, quando um rapaz vestindo casaco longo, apesar do calor, se aproximou e mostrou umas mercadorias sob a roupa: 

  • Celular, capinha, carregador, fone de ouvido. Vai querer?
  • Qual celular você tem? Quero dar um para minha namorada.
  • Tenho um iPhone 14 novinho. Acabou de chegar. R$ 800,00.
  • Só 800? Posso ver? Aceita cheque?
  • O que é cheque?
  • É PIX de gente velha – disse a senhora do café.
  • Cartão de crédito? Débito?
  • Não tenho maquininha.
  • Moeda corrente?
  • Moeda, cara! Em pleno século 2.000!
  • Século XXI. Mostra o celular. Depois vejo como pago.

Ao examinar o aparelho, a tela se acendeu e a foto da namorada surgiu na tela. Castelo levou a mão ao bolso traseiro e sentiu falta de algo.

  • Hei! Esse celular é meu!
  • Meu fornecedor trouxe faz meia hora. A coisa aqui não para.
  • Aqueles dois pirralhos trombadinhas devem ter me surrupiado.
  • Então faço um desconto.
  • O celular é meu e ainda terei de pagar por ele?
  • Então registre B.O. e prove que é seu. Meu pessoal de T. I. limpará os arquivos, os advogados me livram na delegacia, você perde tempo e gasta muito mais.

Castelo entendeu a lógica das vítimas da sociedade. Após longa negociação, com pitacos da mulher do café, os dois chegaram a um acordo. Vão se tornar sócios e expandir o negócio. Contratarão mais pirralhos, comprarão uma mesa, Castelo cuidará das finanças e o rapaz do marketing. Nada como ser dono do próprio nariz, sem chefes e patrões para atrapalhar.

  • Diga uma coisa. O que tinha naquele envelope que os fiscais levaram?
  • Proteção para os tiras não incomodarem e propina para o Vereador da região. Todo mundo sai no lucro. É assim que gira a roda da economia informal.
  • Isso é um absurdo! Não é melhor legalizar de vez?
  • Aí precisa alugar um ponto, registrar os pirralhos, comprar com nota fiscal, pagar impostos, contador e mesmo assim tem de pagar propina e segurança para que pessoas como nós não roubem a gente. Entendeu?
  • Tá OK, só não entendi a grana para o Vereador?
  • Logo terá eleição e ele precisa se reeleger para o esquema continuar sem crise.
  • Que coisa! Bem, acho que já vou indo. Que horas são?
  • Também vou nessa. São 12:45.
  • Ei, esse relógio é meu!
  • Cara, agora que você é meu sócio, R$ 150,00 e não se fala mais nisso!
Laerte Temple
Laerte Temple
Administrador, advogado, mestre, doutor, professor universitário aposentado. Autor de Humor na Quarentena (Kindle) e Todos a Bordo (Kindle)

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