Quais as Principais Propostas de Maquiavel e Bodin ao Pensamento Político Moderno? O Que Levou Maquiavel Distanciar-se dos Tratados da Escolástica e Adotar Postura Semelhante à dos Pensadores do Renascimento? Qual o Principal Conceito Contido no Pensamento de Bodin? Por Que Bodin Defendia Que a Soberania Fosse Transferida aos Magistrados?
Autores como Nicolau Maquiavel e Jean Bodin foram fundamentais no lançamento das bases do pensamento político moderno e, enquanto o primeiro se destacou por ter elaborado uma análise do poder como fato político (independente das questões morais), o segundo inovou ao propor a separação entre Estado e Governo.
A) Nicolau Maquiavel
Maquiavel viveu em um período de transição que é marcado pelo enfraquecimento do poder feudal, haja vista o declínio da legalidade que sustentava toda a estrutura da Idade Média. E, por outro lado, pelo aparecimento de um discurso político que servirá de base – ainda que insípida – para a Idade Moderna. Crises frequentes em repúblicas e principados marcaram a fundo a história da Itália e serviram de modelo para Maquiavel desenvolver seus discursos. Suas obras mais importantes são “O Príncipe” e “Discursos Sobre a Primeira Década de Tito Lívio”.
A transição que define esse período da história também deixa suas marcas no espírito de Maquiavel. Assim como pressupõe em seus discursos a necessidade de trilhar um caminho novo – ainda não proposto por nenhum outro pensador – ele tem a consciência de que encontrar sistemas e métodos apresenta-se tão perigoso quanto a descoberta de novas terras.
De certa forma, os discursos de Maquiavel traduzem esse momento e ganham o caráter de serem preliminares ao pensamento político e estatal que se concretizará no século seguinte, além de trazerem a caracterização que expõe a passagem da concepção medieval à concepção moderna. De sua prática política e sua relação com a família Médici nasceram suas obras. Sua teoria do Estado – concebida a partir de uma meditação forçada no exílio – trouxe um enorme avanço, na medida em que rompeu com os limites da pura especulação filosófica, de tradição secular.
Assim, distanciou-se dos tratados da escolástica e adotou uma postura semelhante à dos pensadores do Renascimento, ao propor a investigação empírica. Suas análises e estudos foram baseados na verdade efetiva dos fatos concretos e não se deixaram influenciar pelas especulações filosófica. Sua proposta foi a de estudar o fenômeno político sob o foco da ação humana; debruçou-se sobre os fundamentos das instituições políticas para entender o poder afeito ao Estado.
A investigação empírica proposta por Maquiavel será sustentada por duas abordagens: de um lado a histórica e de outro a explicação do comportamento humano. Na primeira, ele apresenta o fenômeno histórico como constituído por ciclos, que se repetem, a partir de revoluções. Conhecer e entender os movimentos da história significa poder fazer uma mais precisa leitura dos fatos presentes.
A observação do passado pode trazer o modelo de como agir no presente e, na falta desse modelo, a ação política poderá se basear nas semelhanças das circunstâncias históricas, passadas e presentes. Na análise sobre o comportamento humano, concluiu que todos os homens – em todas as cidades e povos – são egoístas e ambiciosos e que somente são obstados quando coagidos pela força da lei.
Essas duas abordagens funcionam de forma a trazer estabilidade a um pensamento que está alicerçado no método empírico-comparativo, sustentando não só as questões teóricas, mas um conjunto de técnicas sobre como governar. Contudo, não fornecem um manual pronto e acabado para a ação política, apesar de destacar a repetição da história e a invariabilidade do comportamento humano, sugerem uma profunda investigação das circunstâncias sobre as quais se quer agir (arte de bem governar).
Nesse ponto, Maquiavel foge do determinismo imposto pelo destino, já que os espíritos determinados e empreendedores poderão interferir na história, apesar das limitações impostas pela realidade. O filósofo coloca algumas questões: Como seria possível uma república aceitar o desafio da mudança dos tempos? Qual deveria ser a postura do governante? Como ele deveria agir?
A possibilidade de propor uma ação política que tenha êxito diante dessa realidade faz com que Maquiavel leve em consideração as transformações e mudanças de seu tempo. Nessa empreitada, o filósofo propõe dois (2) conceitos que formam uma tensão no estabelecimento das possibilidades da ação individual e coletiva, que são: a virtù ([1]) e a fortuna.
A primeira deve se sobrepor continuamente à segunda no sentido de dominá-la. A análise correta do Estado exige que se deixe de lado a simples observação de períodos de boa ou má sorte para se privilegiar a capacidade de adequação àquilo que o momento exige, em função da sua objetividade. A virtù apresenta-se não só como a capacidade de aproveitar o momento oportuno, a ocasião, como a capacidade de adesão ao que é emergente.
O homem não pode controlar a fortuna e o êxito da ação política está em reconhecer esse fator por meio da virtù. O homem dotado de virtù saberá reconhecer a ocasião posta pela fortuna e adotar uma ação que requeira o conhecimento dos fatos históricos e do comportamento humano a partir das circunstâncias dadas pelo presente (adequação do agir à realidade). O homem que tem a virtù é aquele que está conformado ao seu tempo e que sabe reconhecer as necessidades impostas pelas circunstâncias; ou seja, ele é o inventor daquilo que é possível diante de uma situação concreta.
Assim, as grandes contribuições de Maquiavel podem ser observadas principalmente no campo político, pois ele foi capaz de captar as mudanças concretas de seu tempo e traduziu-as nas suas obras, que ganharam um ar de intensa contemporaneidade. Percebeu um conjunto de circunstâncias, tais como: o primado do Estado diante da religião e a dessacralização da figura do político.
Modernamente, têm-se procurado romper com a crítica ao caráter ideológico das obras de Maquiavel, como também se procura estabelecer um corte dotado de isenção sobre o ponto de vista moral. Assim, torna-se inegável a sua imensa contribuição ao propor a sistematização das questões políticas de seu tempo, pois enxerga a realidade com os olhos de um pensador do Renascimento. Portanto, no bojo de seu pensamento estão presentes as linhas que contornarão a visão moderna de homem segundo uma concepção de indivíduo e a base para o entendimento do que sejam as instituições do Estado, no momento histórico em que viveu.
B) Jean Bodin
Por sua vez, Bodin propõe um conceito que, aliado à análise do Estado e do poder que encerra em si, exerce profunda influência no pensamento político moderno: a soberania. O pensador destaca, em Os Seis Livros da República, que a soberania é o poder absoluto e perpétuo que é inerente à república. Observamos que, antes dele, nenhum outro havia proposto esse conceito unificador do sistema dos conhecimentos políticos.
A concepção que abarca a ideia de um comando supremo e absoluto não é totalmente desconhecida da reflexão jurídica ao período que antecede Bodin, contudo é ele quem inova o pensamento sobre a organização do acúmulo intelectual relativo à vida civil ao propor a unidade do sistema dos conhecimentos políticos sob o império do conceito de soberania.
A doutrina apresentada por Bodin permite reconhecer e identificar o Estado (poder público) como agente da política moderna e a distingui-lo de outras formas de organização anteriores. Assim, o Estado passa a ganhar o status de detentor do monopólio do exercício político. O conceito de Estado passa a contar com a definição de que o poder político se concentra na figura do soberano como fonte última, desvinculado do conceito de governo. O governo, por sua vez, apresenta-se como o exercício material do poder público. O conjunto desses conceitos está organizado sob o ponto de vista jurídico-político.
A soberania, definida como um poder absoluto de disposição sobre a lei civil, apresenta-se como o fundamento que permite fazer a ligação entre as estruturas do Estado, tornando-o um único corpo perfeito. Bodin consegue neutralizar o conflito sobre a interpretação da lei e sobre a vontade que deve guiar a república, pois sua doutrina prevê a concentração do poder nas mãos do soberano. O comando, que implica todas as forças dentro de um território, é dado de cima para baixo, de acordo com o poder do soberano.
A concentração de poder nas mãos do soberano, contudo, não relega os cidadãos a uma condição de não reconhecimento das diversidades. São conservados todos os graus de diferenciação do mundo dos estamentos, já que a soberania é distribuída no interior da comunidade civil. Os cidadãos são todos iguais perante o soberano, mas diferentes quando se relacionam uns com os outros – igualdade perante o soberano e diferenças estamentárias ([2]).
Vale ressaltar aqui, o caso dos magistrados. Para Bodin, a soberania deve ser transferida aos magistrados para que exerçam uma autoridade própria, uma vez que não são meros executores da lei. Pelo contrário, são superiores à lei e dispõem de sua autoridade para transmiti-la a outros. O que significa dizer que o Príncipe não é a única instância autorizada a exercer o poder e que, portanto, este é compartilhado dentro da comunidade.
Há, ainda, a questão dos cidadãos, que são considerados aqueles súditos livres que dependem da soberania alheia. Com a doutrina da cidadania todas as diferenças naturais pertencentes aos súditos, nascidos num determinado lugar ou pertencentes a certa linhagem, são conservadas. Dentro da República pode haver várias cidadanias com leis e costumes diferentes, entretanto, todas elas estarão sujeitas aos decretos de um mesmo soberano. Esse é o fator que mantém a coesão da república, pois indica uma linha vertical que liga o soberano a cada súdito. Merio Scattola, em Ordem da justiça e doutrina da soberania em Jean Bodin, nos ensina:
“A ideia da diferença acompanha-se, assim, à ideia de igualdade: nas suas relações os súditos são inseridos numa ampla rede de diferenças e suas relações são aquelas que intercorrem entre seres diferentes por natureza e por direito, mas, ao mesmo tempo, eles são todos igualmente submetidos ao soberano, e somente com referência a este último podem relacionar-se uns com os outros como partes de um todo” ([3]). Portanto, o conceito de soberania foi fundamental para legitimar a concentração do poder político e econômico nos Estados Absolutistas. Será possível conceber um poder que, atuando dentro de um território, seja centralizado e que se coloque acima de todos, garantindo assim a unidade do Estado. Na metáfora do soberano, será possível reconhecer a unidade territorial, o controle administrativo e a monopolização do poder militar e da violência.
([1]) Trata-se da capacidade do Príncipe em controlar as ocasiões e acontecimento do seu governo, das questões do principado. Assim, o governante com grande Virtù constrói uma estratégia eficaz de governo capaz de sobrestar as dificuldades impostas pela imprevisibilidade da história
([2]) Local destinado àqueles que pertencem ao governo. Trata-se da divisão em estamentos. Exemplo: antigamente vivíamos em uma sociedade estamentária.
([3]) SCATTOLA, Merio. Teologia política. Trad. José Jacinto Correia Serra. Lisboa: Ed. 70, 2009, p 65.