Como uma sociedade cada vez mais conservadora fica tão confortável com pornografia?
Em fevereiro de 2024 a rede de fast-food Burger King lançou no Brasil um comercial estrelado pelo famoso ator pornô Kid Bengala. Na propaganda o ator brinca: “Eu que tenho propriedade para falar de tamanho, venho para falar desse exagero”. E seguem diversas piadas de duplo sentido e referências sexuais. A irreverência chamou atenção na internet, levantando questões. Como uma sociedade cada vez mais conservadora fica tão confortável com pornografia? O fato é que, por mais reprimida sexualmente que uma sociedade se transforme, a pornografia e o sexo são elementos caros, mesmo que sejam frequentemente censurados.
A historiadora Lynn Hunt comenta – na introdução do livro A Invenção da Pornografia – que até 1992, se você quisesse acessar os documentos arquivados no departamento de “reservados” da Biblioteca Nacional francesa, era preciso preencher um formulário explicitando o motivo da solicitação. Uma nota esclarecia que pedidos genéricos, como “razões acadêmicas” [ou, como diriam hoje, “é pro meu tcc”], não seriam aceitos. Hunt brinca com a imagem de bibliotecários chocados e preocupados em manter livros de séculos passados longe de “homens de meia idade vestindo paletós puídos, provavelmente procurando algo diferente de erudição”. Les pervers!
O fato é que se considerarmos “pornografia” como produção literária (ou visual) própria, isso é, com regras, estilos e dinâmicas específicas, ela não pode existir antes do século XIX. A questão é que “pornografia” foi muito mais que isso. Por muito tempo, a produção de obras pornográficas foi importante forma de crítica social, principalmente contra a monarquia e a igreja. A brutalidade das obras de Marquês de Sade (1740 – 1814) frequentemente incorporava personagens aristocratas, militares e clericais. Uma espécia de “manifestação literária de protesto”, muitas obras pornográficas do século XVIII e XIX foram verdadeiros best-sellers, apesar da proibição das vendas. Quando a pornografia consolidou-se como “movimento literário”, ou mesmo como “arte”, a maioria das obras atuavam na intercessão entre “sexo” e “política”, visando uma quebra nos limites e nos protocolos estabelecidos pelas tradições, pelas classes sociais e pela literatura. Sendo ainda um fenômeno que transitava entre classes, isso é, excitava e ofendia tanto os clérigos e reis, quanto aos burguêses e plebeus.
Mas, podemos ir além. Se a considerarmos “pornografia” como simples reproduções de órgãos e práticas sexuais com objetivo de estimular sensações, podemos recuar bem mais. Na cultura romana, conforme Paulo Roberto Ceccarelli, a “pórnē–graphein” pode ser encontrada em pinturas eróticas em Pompeia, em decorações de lugares destinados a festividades de Dionísio. Objetos fálicos e ilustrações de relações sexuais em paredes decoravam diversas construções da cidade. Testículos eram desenhados em calçadas para indicar o caminho de casas de prostituição. No final de fevereiro de 2023 foi noticiado que arqueólogos encontraram um novo utensílio romano. Que tipo? Duas alternativas: Objeto de cozinha, ou o mais antigo brinquedo sexual de Roma. Mas podemos recuar mais.
O sociólogo Richard Sennett conta, em Carne e Pedra: O corpo e a cidade na civilização ocidental, que na Grécia acreditava-se que “macho” e “fêmea” constituíam dois polos de um continuum corporal. Um quente (macho) e um frio (fêmea). Desde o útero! Fetos desprovidos de calor se tornariam criaturas “frágeis”, “frias” e “líquidas”. Segundo Sennett, Aristóteles defendia que o “calor do sêmen” se fundia aos músculos, penetrando a carne através do sangue. Por isso o “macho” tinha músculos firmes e podia expor sua nudez. Tucídides (460 a.C – 400 a.C), historiador grego, dizia que a nudez era uma conquista da civilização. Ao longo da vida, um jovem ateniense era estimulado a manter relações sexuais com homens e mulheres. Em relações heterossexuais, as mulheres comumente inclinavam-se, enquanto os homens mantinham-se de pé ou de joelhos por trás. Muitas ilustrações rementem ao sexo anal como uma prática contraceptiva, além de uma representação de poder do homem sobre a mulher. O sexo entre homens, por outro lado, era praticado com ambos de pé. O homem que se curvava para outro era considerado “afeminado”. Mas isso não quer dizer que as mulheres atenienses eram desprovidas de sexualidade, ou melhor, de prazer. O festival Adonia é um exemplo.
O festival (que começou como uma celebração acrícula, visando a fertilidade) tornou-se uma celebração do apetite sexual das mulheres. Sem julgamentos e privações, as mulheres vagavam pelas vizinhanças ouvindo vozes das ruas escuras, subindo em telhados, indo a encontro com estranhos. O festival ocorria pela noite, em locais de pouca iluminação. No manto da escuridão, só se fazia ouvir gemidos e risadas. Um texto de ficção, romano, brinca com um diálogo possível entre duas mulheres se preparando para o festival: “Estamos preparando um banquete para celebrar [Adonia] na casa do amante de Tessala (…) lembre-se de trazer um pequeno jardim e uma estatueta. E não esqueça o seu Adônis [no contexto, um consolo], para sufocá-lo de beijos”.
Mas, deixando a sexualidade grega, podemos recuar mais. A Vénus de Willendorf – uma estatueta de 11 centímetros de uma mulher corpulenta, com as formas femininas exageradas – descoberta em 1908, que data de 24.000 ou 22.000 anos antes de Cristo, é frequentemente lembrada como uma representação de fertilidade. Alguns arqueólogos chegaram a especular que a representação exagerada das partes femininas era uma representação masculina sobre o corpo da mulher. Isso é, o que aquela sociedade de caçadores e coletores considerava atraente. O escritor brasileiro Rubem Fonseca chegou a chamar a Vénus de Willendorf de “primeira obra de pornografia da humanidade”. Além, como ilustra Michel Justamand, pinturas rupestres paleolíticas apresentavam representações de pênis, vaginas e de relações sexuais. Encontram-se desenhos dessa natureza em cavernas na Austrália, na Nova Caledônia e na Itália. Desenhos de natureza homoafetiva são encontrados na Suécia, no Zimbábue e mais. Encontram-se ainda desenhos de zoofilia. Quando o homem começou a desenvolver arte, primeiro ele pintou a própria mão, depois desenhou um pinto na parede.
Brincadeiras de lado, essa pequena longa digressão temporal nos ajuda a observar que toda sociedade tem suas regras e tabus sobre sexo e pornografia. Ditando tanto o que é lícito quanto o que não é. Pensando a relação da nossa sociedade contemporânea com esses temas, notamos que as tentativas de compreender a sexualidade e a pornografia no ocidente hoje devem sempre considerar a influência da moralidade cristã. Isso porque, como demonstra Sennett, o cristianismo mudou consideravelmente a relação do homem com seu próprio corpo. No mundo pagão, o sofrimento físico pouco era explorado na condição humana, sofrer fisicamente fazia parte da existência, mas não era – via de regra – objeto de busca. Por outro lado, no cristianismo (em especial no primitivo) a dor ao corpo ganhou caráter espiritual, mártir. Lidar com a dor tornou-se mais importante que buscar prazer. Enquanto muitas sociedades antigas cultivavam e idealizavam o “corpo belo” (e não falamos apenas dos Gregos e dos Romanos, mas, como dito acima, especula-se que esse era o propósito da Vénus de Willendorf), no cristianismo, diante de Deus, todos os corpos eram tidos como belos. A forma física também deixou de ser parte essencial do ritual. Mesmo que existissem diversas idealizações de um paraíso no pós-vida (Os Campos Elísios grego, o Sekhet-Aaru egípcio, o Valhalla nórdico) no cristianismo o paraíso não é “pós-vida”, mas sim a vida eterna, o objetivo. Como eternizou a canção gospel de Dick Blakeslee em 1948, os cristãos sempre se reconheceram como apenas “de passagem”. Sem falar, claro, na luxúria. Pecado capital que corrói a alma e o corpo, que leva o homem a cometer adultério, cobiça e mesmo a idolatrar a carne mais que a Deus. Como dito em 1 João, 15 – 16: “tudo o que há no mundo – a cobiça da carne, a cobiça dos olhos e a ostentação dos bens – não provém do Pai, mas do mundo. O mundo e a sua cobiça passam, mas aquele que faz a vontade de Deus permanece para sempre.” Foi, inclusive, em resposta a essa visão de mundo religiosa e politizada (ao longo da idade média) que no “século das luzes” a “literatura de luz vermelha” se formou como corrente literária e movimento de confronto ao conservadorismo (como dito no início desse texto). Depois, engolida pelo capitalismo, passou a vender fotos de pés e águas de banho.
Mas e em terras tupiniquins? Como o Brasil tratou o sexo e a pornografia esses anos todos, sendo uma nação cristã, monárquica e mestiça? Segundo o historiador Ronaldo Vainfas, o versinho “Não existe pecado do lado de baixo do equador”, eternizado na música de Chico Buarque, já era popular na Europa do século XVII. De fato, o primeiro livro sobre história do Brasil que se tem registro (o História do Brasil, de 1627, escrito pelo frei Vicente de Salvador) diz que o nome original do país, Terra de Santa Cruz, não vingou justamente pela luxuria e alto libido presente nessa terra. Por isso o Diabo teria dado um nome mais adequado: Brasil, nome de pau vermelho.
Mas o espanto (ou gozo) português com as aparentes liberdades sexuais nas terras brasileiras é bem documentado. O navegador Americo Vespucio – que deu o nome ao nosso continente – relatou que os índios tinham tantas mulheres quanto quisessem, que chegavam a ter relações com suas mães, primas e mais. Vainfas ressalva, grande exagero do navegador, uma vez que os índios também possuíam uma série de tabus sexuais. Mas, não tinham a mesma relação com o corpo que os europeus, nem a mesma moral. Em 1549 o jesuíta Manuel de Nobrega chegou a escrever para a coroa pedindo que fossem enviadas mulheres para a colônia, para que se casassem com os portugueses. Mesmo que fossem “mulheres de má vida”, desde que viessem para casar. Havia uma preocupação moral com a luxuria na colônia, não só entre o clero. Não era incomum irromper um debate sobre se a fornicação com índias era pecado ou não. Quando a inquisição bateu no Brasil, em 1691, foi revelado que os portugueses que aqui habitavam eram também tomados por culpa. Diziam que só se relacionavam com índias pois eram “mulheres públicas”, mas que jamais teriam relações com virgens, mulheres casadas ou, principalmente, mulheres brancas. Por fim, sexo, religião e crendice foram rapidamente misturados no Brasil. Era difundida a crença de que uma mulher conseguiria domar o amante, prendê-lo, ou mesmo amansar o marido violento, se recitassem as palavras de consagração da hóstia durante o ato sexual: “Tomei e comei, este é o meu corpo”, “Hoc est enim Corpus meum”. Existiam ainda outras crendices, havia quem colocasse o crucifixo embaixo da cama antes do ato, outros diziam as palavras da missa inteira… Um pouco mais extremo que os “oh my god” dos filmes pornôs atuais.
A relação entre sexo e cultura é extremamente complexa, portanto, a pergunta levantada no primeiro parágrafo não pode ter uma resposta simples. Mas olhando para trás fica evidente que a pornografia e o sexo são modelados e usados em diferentes contextos, seja por recreação, rebeldia ou habito. Muitos sociólogo, psicanalistas, antropólogos e mais e mais, já elaboraram verdadeiros tratados sobre o assunto. A relação entre sexo e culpa, especialmente na tradição cristã, também é amplamente estudada. Além das implicações no machismo, as noções de virilidade no sexo e mais. Para certas tradições, se por um lado o sexo e o desejo são fontes de vergonha, por outro a virilidade é sinal de força. Muitos movimentos conservadores defendem funções sociais de gêneros (como o emergente movimento tradwife) que professam uma submissão não só sexual e moral dos sexos, mas também social e financeira. Como diz a famosa frase atribuída ao escritor britânico (e gay) Oscar Wild: “Tudo no mundo é sobre sexo, exceto sexo. Sexo é sobre poder”. O fato é que, para muita gente hoje, em terra de brocha, meia bomba é rei (e imbrochável é mito).
Autor:
João Victor Uzer