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sábado, 16 de novembro de 2024

Caim, o rei dos clichês

Caim Dhipé é um cara muito estranho, a começar pelo nome. Órfão desde os 9 anos, os tios e os primos não quiseram ficar com ele. Quem o criou foi uma idosa que morava sozinha e era vizinha de sua finada avó. Excelente memória, cinéfilo, leitor voraz, cultivou o hábito de rechear as falas com clichês, frases feitas, citações e provérbios. Concluiu o ensino médio isolado na turma, posto que ninguém o aceitava nos grupos de trabalho. Certa vez, sustentou que não deve ter vida inteligente fora da terra, porque nem na sua escola existe. Foi parar na diretoria e argumentou que a escola ensina coisas que nunca irá usar. Arrumou dezenas de inimigos. Os professores nunca o entenderam, mas ele sempre passou e ano porque ninguém queria tê-lo novamente como aluno.

Antes de morrer e deixar-lhe a casa e uma boa grana como herança, a idosa assistiu orgulhosa sua formatura em psicologia. O filho que nunca teve subiu um importante degrau na vida. Caim tentou convidar alguém para morar consigo e dividir as despesas, mas não deu certo, e mesmo morando sozinho, fugiu de casa duas vezes. 

No bairro havia um conhecido trombadinha que também se formou psicologia, mas na prisão. Procurou Caim e assim que obteve a condicional e propôs montarem uma clínica especializada no atendimento de detentos, ex detentos e familiares. Não deu certo. O que começou com um contrato, terminou em briga e nunca mais se falaram, como num casamento.

Em vez de seguir carreira solo, Caim passou num concurso público para psicólogo forense. Muito dedicado e objetivo, seus pareceres técnicos eram lacônicos e inusitados, mas contestá-los era pior. Foi nomeado mentor dos novatos e dos transferidos para sua equipe como punição.

Quando algum liderado resistia às suas ideias, dizia “pior do que está, não fica”, mas quando lhe diziam que algo era muito ruim, respondia que nada é tão ruim que não possa piorar. A palavra final era sempre dele.

Os psicólogos forenses passam periodicamente por sessões de análise. Um dos analistas de Caim suicidou-se e deixou uma carta pondo a culpa nele. Outro deixou a profissão e comprou um carrinho de cachorro quente e um terceiro virou morador de rua. 

A distribuição dos casos para os psicólogos é feita por sorteio eletrônico. Ainda bem, diziam os colegas. Assim o culpado será o computador. Coube a Caim elaborar o laudo psicológico de um jovem ciumento que cumpre pena por agredir amigos e colegas de trabalho da noiva. Após a quinta sessão, com quatro horas cada, o homem se suicidou. O laudo de Caim teve uma única citação, de Camões: melhor seria se não fosse, para tão grande amor tão curta vida. Quando acompanhou policiais no local de uma chacina com nove mortos, o delegado pediu sua opinião e Caim citou Bogart, no filme  Casablanca: prendam os suspeitos de sempre. 

Uma mulher, vítima de agressão física pelo marido, foi atendida por ele no leito hospitalar e com o rosto cheio de marcas feitas à navalha. O laudo foi shakespeariano e sucinto: só ri da cicatriz quem nunca foi ferido. Caim também analisou o corretor de imóveis que agredia os clientes sempre que as esposas impediam o negócio por não gostarem da maçaneta da porta.

  • Venda apenas apartamentos na planta – recomendou Caim.
  • Por que? – perguntou o corretor.
  • Imóvel na planta não tem maçaneta! Caso arquivado.

Chamado pelo Diretor Geral, Caim foi à sua casa e encantou-se com o piano Steinway & Sons. Após uma hora relatando queixas e críticas ao seu trabalho, o doutor Samuel perguntou o que teria a dizer em sua defesa. Ele apontou para o belo piano e disse: “Toque outra vez, Sam”. Casablanca, de novo.

Quando completou trinta anos de serviço, tendo sobrevivido a nove Diretores Gerais (três se demitiram e dois estão em casa de repouso), Caim aposentou-se por tempo de serviço, com salário integral. Na despedida, o novo Diretor Geral dirigiu palavras de agradecimento, mais por livrar-se dele do que pela falta que não faria. O discurso de Caim teve uma única frase: Vim, vi e venci, além da notícia de que iria candidato a deputado. E foi eleito! 

Existem muitos Caim por aí: empregados, chefes, eleitos, concursados, políticos e apadrinhados. Todos são muito bem pagos para assessorar alguém ou produzir leis ou relatórios inodoros, cujo destino aponta para o arquivo redondo, também conhecido por cesto de lixo. Por que pessoas como Caim são contratadas, eleitas, promovidas? Atrapalham mais do que ajudam, mas estão sempre em evidência, ganham altos salários, benefícios e deixam rastros de destruição e vítimas pelo caminho. É isso que acontece quando se dá poder a um imbecil motivado. Por que ninguém impede esse tipo de coisa? Porque muitos esperam que outros façam aquilo que desejam, mas não querem se envolver. Vida que segue.

            Feliz Natal a todos que me prestigiaram com a leitura e comentários sobre minhas colunas semanais.

Laerte Temple
Laerte Temple
Administrador, advogado, mestre, doutor, professor universitário aposentado. Autor de Humor na Quarentena (Kindle) e Todos a Bordo (Kindle)

6 COMENTÁRIOS

  1. Caim representa o baixo nível, padrão do funcionalismo público.
    Feliz Natal Laerte, continue escrevendo crônicas inteligentes e bem humoradas, parabéns!

  2. Caim representa o baixo nível, padrão do funcionalismo público.

    Feliz Natal Laerte, continue escrevendo crônicas inteligentes e bem humoradas, parabéns!

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