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segunda-feira, 29 de abril de 2024

A rota do asteroide e o fim dos tempos

Saraiva trabalha há 12 anos numa Estatal criada para sanar problemas que nunca existiram. Entra governo, sai governo, a Estatal jamais funcionou e nunca foi extinta. Os 190 empregados que nada fazem recebem salários todos os meses, bônus anuais e tiram férias regularmente. Mesmo sem ter o que fazer, Saraiva foi promovido quatro vezes, por mérito e por antiguidade.

Nas horas ociosas (todas), estuda astrofísica, sua paixão recente. O astrônomo amador ficou famoso ao descobrir um asteroide e foi promovido, embora ninguém na Estatal saiba para que serve sua descoberta. Teve direito de nomear o objeto estelar e, fã da banda Os Titãs, batizou-o Hyperion, um dos titãs da mitologia. Também fez os cálculos que permitiram localizar galáxias num protosuperaglomerado. Suas contribuições para a ciência renderam-lhe o Nobel de Física, muita grana e um Rolex de ouro cravejado de diamantes, presente de um príncipe do Oriente.

Certa noite – astrônomos passam noites observando os céus – curtia Hyperion e recalculava a rota quando descobriu que dentro de alguns dias ele colidirá com o planeta. Precisa recalcular, mas a probabilidade é real e o impacto provocará uma nuvem de poeira semelhante à que determinou o fim dos dinossauros, há 66 milhões de anos. Como ninguém viu isso?

Saraiva não foi trabalhar por 4 dias, o que nada representou para a economia, pois não há o que fazer na Estatal. Passou noites em claro refazendo cálculos, comunicou a União Astronômica Internacional e enviou artigo para uma revista científica. Para limpar a barra com a noiva, contou-lhe tudo em primeira mão. Madalena, jornalista altamente competitiva que nunca fez sucesso e não para no emprego, sentiu o furo de reportagem e preparou um texto bombástico. Omitiu o namoro com Saraiva, bolou uma entrevista fake e enviou releases como free lancer.

Em tempos de notícias instantâneas que provocam histeria coletiva, os jornais publicaram a “bomba” e a revista científica, para não ficar para trás, postou o artigo no site. O assunto gerou calorosos debates. Artistas, acadêmicos, políticos, blogueiros, influenciadores (que opinam sobre tudo) e videntes comentaram o “Juízo Final”. Oposição e Situação uniram-se num pedido de CPI com assinaturas de 100% dos congressistas. O Supremo ainda não se pronunciou, pois um dos ministros pediu vistas e não há prazo para julgar o assunto.

Saraiva se considera responsável pela atual situação. A mídia não para de divulgar falências, bolsas despencando mundo afora, gente se suicidando e também se reconciliando, templos lotados, uns se batizando e outros se convertendo. O Conselho de Segurança da ONU e a NASA estão em alerta. CNN e Al Jazira disputam a exclusividade na cobertura do fim do mundo. Os Rolling Stones e Paul McCartney divulgaram que talvez encerrem suas carreiras.

Saraiva quis ver o pandemônio de perto, pois seus cálculos mostram que colisão será em 4 dias. Consultou as horas e viu que usava o Rolex. Profetas pregavam na Praça da Sé para multidões atentas: convertei-vos porque o fim se aproxima! Algumas pessoas usavam camisetas com a frase SEM MEDO DE SER FELIZ, mas não davam a mínima para o asteroide. Saraiva não sabia que eram abadás de um Trio Elétrico e sentiu o baque.

Um pedinte estendeu-lhe a mão e ele não deu bola, mas ao ler a faixa ARREPENDA-SE, entrou numa lanchonete, comprou esfihas, uma lata de refrigerante e deu ao mendigo. Se mundo vai acabar, que ao menos morram bem alimentados. Então Saraiva teve uma revelação. Entrou no banco, sacou todo o dinheiro que pode e circulou pela praça distribuindo notas de cem. Já que vamos morrer e ninguém levará coisa alguma deste mundo, que pelo menos os sem teto tenham algum momento de alegria. Nos dias seguintes, vendeu o carro, sacou mais dinheiro e distribuiu a quem encontrasse pela rua, da Praça da Sé à cracolândia.

De emprego novo na TV e em alta, Madalena nem reparou no sumiço do noivo. A mídia não associou o benfeitor dos sem teto ao astrônomo que descobriu o impacto do asteroide, mas a noiva viu a reportagem, reconheceu Saraiva e decidiu procurá-lo, logo após cobrir a prova do ENEM. Seu plano era revelar o noivado, casar-se ao vivo na TV e aguardar o fim dos tempos.

Naquela tarde, encontrou Saraiva em péssimo estado, largado e quase pelado. Ele disse que foi espancado e roubaram quase tudo. Sobraram apenas uns trapos e, por milagre, o Rolex.

  • Tu é mesmo um babaca – disse Madalena.
  • Babaca, eu? Só porque revelei o fim do mundo?
  • Sabia que seu asteroide foi tema de uma questão do ENEM?
  • É mesmo? Como era o enunciado?
  • Sei lá, mas um estudante da periferia refez as contas e achou erros na data e local do impacto.
  • Não pode ser. Eu conferi tudo!
  • Vai colidir sim, mas com Júpiter e não em alguns dias, mas em alguns milhões de anos. Você errou no “vai um”, ex noivo. Sua carreira de astrônomo foi para o brejo e a Estatal te demitiu!

Madalena partiu levando o Rolex de ouro cravejado de diamantes. Saraiva morreu só, pobre, largado e quase pelado. Realmente, da vida, nada se leva.

Laerte Temple
Laerte Temple
Administrador, advogado, mestre, doutor, professor universitário aposentado. Autor de Humor na Quarentena (Kindle) e Todos a Bordo (Kindle)

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