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domingo, 17 de novembro de 2024

Português complicado parece conversa de surdos

O Português não é para principiantes. Quando você pensa que conhece o idioma, descobre novidades: figuras de linguagem, regionalismos, estrangeirismos, a língua é viva e está sempre evoluindo, ou involuindo. Modismos, idiotismos, politicamente correto (?), gírias, todo dia tem coisa nova. 

Muitos se lembram de bordões publicitários, como “não é uma Brastemp” ou  “que dureza” e outros que incorporamos ao vocabulário corrente, assim como falas marcantes de personagens de novelas ou do humorismo. Em uns poucos anos, passamos de expressões como “mina”, “bobo-moco”, para “danceteria”, “balada”,  “dar um rolê”, “causando”, “se fazendo”, “se achando” e agora “dar um Google”, “youtuber”, “tiktoker”, “lacrar”, “spoiler”, “cancelar”, “stalker” etc. 

E os termos da informática que o mundo moderno nos obriga a conhecer? E o dialeto dos funkeiros, poliglotas de lanchonete, instragramers, descolados e outros membros da fauna humana? Adotei Gigabyte, displeiar, deletar, printar, backup, mas não aceito “realiza!” falso cognato para “to realize” (constatar). Até parece o clássico “tea with me, I book your face”. Traduzindo: “chá comigo, eu livro sua cara”. A lista é  enorme. Conheço gente que pede comida Delivery, compra no Drive Through, mas quando acaba a luz, corre para trocar o “fuzil”. 

O português escrito é pior. Tem gente querendo a exclusão de letras como Q, que só funciona ao lado do U. Por quê não se escreve “por Kê”? Muita tinta de impressora seria economizada. S e Z, G e J, precisam entrar em acordo. Alguém tem de rediscutir o H, que não tem som de nada. Gramática e ortografia precisam ser revistas. Tudo Junto se escreve separado e Separado se escreve tudo junto. Ônibus e Metrô têm acento e metade dos passageiros viaja em pé. Carro não tem acento e todos viajam sentados. É acento ou assento? Percebem como é confuso?

Certa vez, na Fuvest, o tema da redação foi: A importância do lazer. Teve vestibulando nervoso que leu “leizer” e tirou zero na prova. O examinador estava mais preocupado em saber se o candidato conhecia ortografia do que se sabia escrever “n” linhas com algum sentido. Ou estava com preguiça de corrigir.

Pensem nos idosos, que aprenderam de um jeito e vira e mexe a regra muda. Como fica? Mas quem tem ou teve uma avozinha ranzinza, que enxerga e ouve mal, confunde tudo e cria confusão, sabe o que é alegria em forma de gente.

Um exemplo simplesmente complicado

Dona Ermengarda, 86 anos, passou duas semanas na UTI com Covid. A alta, foi muito festejada e deu até no Jornal Nacional. Há um mês foi atropelada e passou por cirurgia. Recuperada, foi para casa, mesmo com problemas de visão e audição. No tempo da Covid severa, por causa do isolamento, poucos foram visitá-la, mas agora, até o neto que mora em Bacabal, no Maranhão, decidiu vir e trazer a bisneta de dois anos que ela ainda não conhece. O neto, disse que a nenê adora Danette e a mãe Surubim ao forno. Dona Ermengarda telefonou para encomendar, mas por causa da visão fraca discou número errado (seu telefone tem disco). Ela ouve mal, a ligação era péssima, com ruídos e a atendente estava com otite e resfriada.

  • Alô. É do restaurante? Vocês têm Danette?
  • Sou representante da Net. Fale alto porque eu estou com otite. Amarante, ao seu dispor. 
  • Você é amante do Nestor? E eu com isso? Quero uma porção de Danette.
  • Promoção da Net? Básico ou completo?
  • É para a gatinha, filha do meu neto. Moram em Bacabal. Têm Surubim ao forno? Estou sarada e eles vêm me visitar. 
  • Surubinha e pornô com gatinhas? Bacanal sem parar? Quem diria? Tem de tudo do plano completo, sua taradinha!
  • Sardinha não. Só como canja de cará. É um marasmo.
  • Transa no sofá e tem orgasmo? Caramba! Que disposição?
  • Composição? Não, mocinha, não componho. Só canto no coral.
  • Só oral? Tá bom! Escuta, preciso atualizar a base de dados.
  • Os rapazes estão acabados? Mas é só Danette e Surubim ao forno! Quero uma porção gigante. Gosto da família bem alimentada.
  • Promoção Gigabite com ligação ilimitada? Prontinho. Pacote pornô, gatinhas e rapazes sarados. Agora bacanal sem parar e transa no sofá são por conta da senhora. K K K. Os técnicos vão sem demora.
  • Sim, não vejo a hora. Tô numa ansiedade danada e emoção à beça.
  • Também quero chegar na idade avançada com excitação como essa.

Os técnicos da Net chegaram quando Ermengarda dormia e foram atendidos pela cuidadora, que nada questionou. A família chegou quando ela via TV, sem os óculos. Todos se espantaram com o programa que ela assistia, mas fingiram não se incomodar. Afinal, passou por maus bocados.

  • E aí vovó. Vendo um pornô legal?
  • O forno é convencional, mas é bom.
  • Gosta desse programa?
  • Telegrama? Não recebi.
  • Mãe, não perca tempo nesse canal? Muda, que a mente espraia.
  • Sim, quando o tempo muda eu passo mal, mas gosto da praia.
  • Aí só tem besteiras e sexo animal.
  • O Palmeiras não tem mundial? Sorte sua que seu pai já morreu.
  • Esse filme é sobre aquela vadia que gravou o presidente no salão oval da Casa Branca, com a mão na toca da coruja.
  • Branca engravidou do gerente no carnaval? Gosto de fofoca suja. Conta! 

Ninguém tinha fome e Ermengarda estava bem. A cuidadora fez café e a mãe da criança levou Danette. Ao saírem, o filho disse que agora a nenê está com sono e a mãe cansada, precisando de paz.

  • Vão embora porque eu estou acabada e soltando gás? É muito desaforo. 

Ah esses vendedores de canais por assinatura! São ruins de português, não entendem o que a gente quer e empurram o que não pedimos. Pobre dos idosos!

Laerte Temple
Laerte Temple
Administrador, advogado, mestre, doutor, professor universitário aposentado. Autor de Humor na Quarentena (Kindle) e Todos a Bordo (Kindle)

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