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sábado, 22 de junho de 2024

O polaco e a yanomami discutem a relação

Teatro Amazonas, Largo São Sebastião, centro de Manaus. A ONU convocou uma Conferência Internacional sobre a Amazônia e percebeu tarde demais que a sigla em português – CIA – poderia trazer problemas. E trouxe. Imaginando tratar-se da famosa agência de espionagem, as autoridades temiam pela possível presença de agentes de inteligência infiltrados nas delegações estrangeiras. Porém, o aconteceu não podeia ter sido previsto pela ONU, nem pela CIA, MI-6, MOSSAD, OTAN, SVR (antiga KGB) ou qualquer vidente ou pai de santo de plantão.

O primeiro quase incidente diplomático aconteceu no aeroporto de Manaus, quando os oficiais não se entenderam com um polonês solitário. Ele acordou tarde, perdeu o voo e chegou sem o seu grupo. Sua jaqueta tem a inscrição ZGBYNW, provavelmente o nome de algum organismo internacional, mas não havia qualquer referência no manual do Itamaraty. Os inspetores brasileiros não falam nada além do português sofrível e o polaco é monoglota, gago e rouco.

Após muita negociação, conseguiram examinar seu passaporte: Krzysztof Grzergorz Zgbynw. Resolveram apelida-lo de Beto, pois seu nome contém metade das consoantes do alfabeto. É um galego atarracado, sem pescoço, com vastas costeletas e nariz adunco. Tudo se acalmou quando uma piriguete brasileira que vive na Polônia reconheceu o cliente constante. Disse que ele é chef de cozinha em Gdansk. Sem saber se Gdansk é o nome da cidade, estado ou do restaurante, os oficiais liberaram Beto e o supervisor anotou o número do celular da bela piriguete para futuro contato profissional. Se contato da profissão dele ou dela, não se sabe.

Beto teve de aguardar na antessala porque o evento já tinha começado e atrasos não são permitidos. O silêncio era tamanho que dava até para ouvir alguém dobrando um lenço ou as próprias células se dividindo. A ar condicionado teve problemas e foi direcionado apenas para o auditório. A temperatura na antessala chegou aos 43 graus e sensação térmica de Arre Égua! Beto não viu ninguém por perto e tirou a calça pela cabeça para não ter de se levantar. Mas havia, sim, alguém que, como ele, estava quase sem roupa. Era uma mulher com maquiagem pesada e colorida. Curioso, Beto resolveu averiguar.

Vestindo apenas cueca samba-canção, achegou-se à moça e leu o crachá pendurado entre duas mini montanhas rochosas nuas: CHIANNE, que no idioma tribal significa “aquela que fala sem inteligência”. A moça, que fala apenas a língua Yanomami, é filha do colorido e emplumado ARARIWE (espírito de arara), cacique e chefe da delegação dos povos originais. A questão do empoderamento feminino é tabu na tribo e Chianne é filha única. Se o pai morrer sem herdeiro masculino, haverá luta pelo cargo. 

Largados e pelados, índia e polaco tentaram comunicação por sinais, sem sucesso. Beto é monossilábico e nada flexível, o que o obrigou a desistir de ser contorcionista. Chianne é forte, carrancuda e meio doida. Quando a FUNAI exibiu o filme Psicose na aldeia, todos imaginavam que o roteiro foi inspirado nela.

Conversa não vai, conversa não vem, uma coisa levou a outra e Chianne partiu para cima do polaco, que não teve como se defender. Transaram intensamente até a chagada de Sharon, a tradutora da ONU. Ofegante, o chef pedia socorro enquanto Chianne gesticulava para ela dar o fora. Imaginando tratar-se de convite para ménage, a multipoliglota fluente em 74 idiomas e dialetos indígenas desconversou, acalmou o casal e contornou a situação com o embaixador polonês e Arariwe, que os convidou para uma festa na aldeia. 

Os polacos levaram caixas de vodka. Eles estão acostumados a beber, mas os nativos ficaram chapados e dançaram pelados em fila indiana, literalmente. Parecia a dança do Conga em boate alternativa do centro de Varsóvia. Chianne levou Beto para sua oca, na marra, e novamente deu em cima do chef. Para sorte do polaco, a vodka fez efeito e derrubou a silvícola. 

Beto conseguiu escapar, voltou à Polônia e reassumiu a cozinha no pequeno restaurante em Gdansk, onde ganha 8 mil Ztotys por mês (R$ 6.500,00). Quando sobra alguma grana, requisita os serviços técnicos da piriguete brasileira. Ele prefere sua cozinha, cujo calor parece neve, se comparado à Amazônia. Também prefere a piriguete, mais gentil e sedutora que a índia maluca.

Seis meses depois, a piriguete visitou Beto, recém demitido do restaurante. Levou um jornal brasileiro que dizia que a Justiça decidiu em favor dos Yanomamis, cuja reserva agora é várias vezes o tamanho da Polônia. Graças à força física, sua doideira e o empoderamento feminino recém chegado à tribo, Chianne se tornou a primeira mulher cacique. Sua sucessão não será problema porque ela é mãe de um galeguinho atarracado, sem pescoço, nariz adunco, forte, rouco e carrancudo.

A piriguete foi embora porque Beto não tem grana nem para um cafuné. Riqueza trás felicidade? Não, mas por acaso a pobreza trás? O que é melhor: ser pobre ou ser um rico infeliz? Um infeliz pobre é duas vezes infeliz. De repente, Beto sentiu saudade de Manaus e imaginou como seria sua vida casado com a silvícola doida, cuja inteligência nula não foi obstáculo ao poder. Aliás, doideira e burrice parecem condições obrigatórias para ocupar cargos de comando na região. E viva la vida loca, para Chianne, não para Beto, ou melhor Krzysztof Grzergorz Zgbynw.

Laerte Temple
Laerte Temple
Administrador, advogado, mestre, doutor, professor universitário aposentado. Autor de Humor na Quarentena (Kindle) e Todos a Bordo (Kindle)

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