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quinta-feira, 29 de agosto de 2024

Mesa para uma Ervilha

Ao abrir a porta fiquei mais tranquilo: o olho mágico não estava com defeito e era mesmo um esquilo quem batia, e ao volante de uma caminhonete um sapo o aguardava com o motor ligado. Disse-lhe (sem conter o riso) que a casa do joão-de-barro ficava na árvore do outro lado da rua, mas perguntei em que poderia ajudá-lo.

Era um voluntário do Grupo de Amigos dos Animais que estava recolhendo donativos para o bazar da entidade. Nisto minha esposa trouxe uma sacola já separada com vários enlatados, e minutos depois a descoberta: uma lata de ervilhas ficara no armário. Tarde demais para alcançá-lo, resolvemos utilizá-la no almoço, numa salada. Há tempos não comíamos ervilhas e aquela lata que viera na cesta básica normalmente iria para a igreja (não que fosse religiosa), mas desta vez…

Aos domingos de manhã eu (intencionalmente) ficava na cozinha e entre uma ajuda e outra para o almoço, alguns aperitivos e beliscadas nos alimentos (…talvez isto explique a barriga). Naquele dia as crianças ainda tomavam o café da manhã enquanto minha esposa estava entretida com uma nova receita. Não havia qualquer assunto “em pauta”, até que a caçula perguntou quantas ervilhas havia na lata. Disse-lhe que não fazia ideia (não vá me dizer que você sabe!).

Perguntou-me então se poderia contá-las. Bem… por que não? Exercitaria a matemática, além do que sua professora não aprovaria o 0800 da embalagem para sanar uma dúvida sem o mínimo esforço e a mínima espera.

Abri a lata, deixei escorrer toda a água e despejei o conteúdo numa tigela. As ervilhas passaram então pela contagem e recontagem, para obterem o número exato. Se naquele momento alguém chegasse, jamais diria o que estávamos fazendo… E, enquanto as crianças somavam, lembrei-me do tempo do supletivo, aonde o professor Torresmo, de Biologia, explicava algo que jamais entendi: a Lei de Mendel. Aquela matéria rolou aulas a fio, numa demonstração de que não apenas eu tinha dificuldade em compreendê-la.

Não demorou (afinal, não tinha a persistência de um monge) para que eu jogasse a toalha, enquanto os demais alunos e o professor insistiam no (argh!) assunto. Sempre distraído, cheguei a pensar em escrever um conto, mas até aí eu não era páreo para as ervilhas: não consegui encontrar um nome para a protagonista (além de Ervíla, ou Érvila) que iniciaria o título A Trajetória de Uma Ervilha. O enredo era relativamente comum (logicamente não entre ervilhas e humanos): a ervilha amava Mendel que, como monge, preferiu o celibato. No final, ela (originária do Oriente Médio) se suicidava.

Embora eu soubesse que o tipo de grão que amadurece mais rapidamente é o liso (seria, portanto a espécie da personagem principal) e não o rugoso, a parte mais complicada estava justamente nas leis da dominância, segregação e independência dos caracteres neste (para mim) incompreensível princípio da hereditariedade. Bem, as ervilhas e eu sobrevivemos e embora (ainda e sempre) não as compreenda, as aceito em qualquer prato.

O assunto ervilha (possivelmente uma praga ou maldição de Mendel e do Torresmo) chegava então ao fim. Ou quase… a dúvida agora era a quantidade de grãos contidos numa vagem… e isto também não ficaria sem resposta (entre quatro e doze), já que vários livros foram parar sobre a mesa.

Não sei o que as crianças viram de tão interessante na ervilha. Só sei que a exemplo de Mendel (que devia ter muito tempo de sobra) estávamos invadindo a privacidade das indefesas leguminosas. As perguntas foram se multiplicando e o almoço ainda tardaria.

Para a menina, elas (as “ervilhinhas”) tinham pais, pois tinham (ainda que o mesmo) nome: Jurema. Minha “porção Torresmo” esclareceu que Jurema, Maria, Dileta, Flávia e Marina, são alguns dos nomes dados às (mais de 200) variedades de ervilhas, cujo nome científico é Pisum Sativum e a colheita se dá em torno de 70 dias após o plantio. E fazem parte da mesma espécie de leguminosas de grãos o feijão, o amendoim, o grão-de-bico, a lentilha.

Logo após o almoço, uma ajuda para a mamãe, e todos retirando a louça e talheres da mesa, varrendo a cozinha e colocando tudo em ordem. Enquanto o pequeno varria o chão, surpresa: um grão de ervilha.

Era apenas um grão de ervilha, mas… teria sido ele contado?! O que faríamos com ele? Por que seu destino seria diferente das demais leguminosas? O assunto voltava a se revestir de grande importância. A cena era medíocre: duas crianças e um adulto olhando para uma ervilha no chão, sem saber que atitude tomar. Imaginem se o futuro do planeta dependesse de algo tão relevante assim…

A caçula disse que ela (a ervilha) merecia um enterro decente e o menino, que deveria ser deixada à própria sorte no jardim. Talvez um pássaro, formigas ou o vento se encarregassem de cumprir o papel da natureza, uma vez que ela havia se libertado da conserva onde estivera aprisionada (Deus…).

Talvez estivessem esperando minha opinião enquanto Duque chegou, olhou para os três (não diria patetas) e, numa lambida engoliu-a sem aparentar qualquer remorso pelo que havia acabado de fazer (e na frente das crianças).

E agora eram duas crianças e um adulto olhando para um cão. Disse à ele que tudo estava terminado e que deveria ir para (sua) casa. E ele foi. Terminamos assim a limpeza na cozinha e aparentemente encerramos “o caso ervilha”.

Mais tarde, enquanto via TV a caçula veio me mostrar seus mais novos desenhos. O de sempre: casinha, árvore, flor, Duque, ervilha… que criança desenharia uma leguminosa?! Bem, nada de traumatizá-la. Aquilo era apenas reflexo do tema que dominara boa parte do dia. Além disso, o desenho da ervilha ficara bonito.

No dia seguinte nem me lembrava mais do assunto até ligar para minha esposa como sempre fazia em viagens, para saber se a casa estava no (mesmo) lugar, este tipo de coisas. Estava. O único trabalho que tivera durante o dia foi conseguir um esmalte da tonalidade “verde ervilha” para a caçula (que graça!). E se futuramente desejasse um buquê de flores de ervilhas em seu casamento?!

E como (quase) tudo que se aprende pode ser usado para bem ou mal, nas brigas diárias das crianças novas ofensas em seus (ainda) reduzidos vocabulários: herbácea, gavinha, e outras, mas nada que não fosse colocado em pratos limpos…(que estou dizendo?!) pela mamãe. Também teve de prometer para “qualquer dia” um passeio numa plantação… de ervilhas.

No jantar do restaurante, lá estavam novamente as danadinhas a me desafiar em vários e gostosos pratos. E de pensar que a engenharia genética moderna surgiu com os trabalhos do monge austríaco Gregor Johann Mendel (1822-1884), claro que com alguns precursores e sucessores não menos importantes que buscaram descobrir as leis da herança biológica.

Mas, ao ficar livre do supletivo, achei que não iria mais me deparar com este assunto e hoje não tenho certeza (alguma) de que isto não irá ocorrer novamente. Mas que tolice… com tanta coisa para se pensar e se fazer, você acha que vou ficar com este assunto me martelando?! Vou mesmo é degustar este prato! Hummmm… ervilhas rugosas!! Secas, frescas ou enlatadas são de fácil digestão, mais adocicadas e graúdas…

– Resposta: 480, numa lata de 200 g da variedade Mikado. Margem de erro: 01 (uma) para mais ou para menos.

– Professor Torresmo – Professor Antonio Roberto de Oliveira (in memoriam)

Autor:

Miguel Arcangelo Picoli é autor do livro Momentos (contos) e Contos para Cassandra (em homenagem à escritora Cassandra Rios).

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