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quinta-feira, 21 de novembro de 2024

Esculpido em Carrara

Quando dois indivíduos são praticamente idênticos, algumas pessoas descrevem o fato dizendo: “cara de um, focinho do outro”, ou: “fulano é cuspido e escarrado a cara de beltrano”, expressão que sempre intrigou Jofre, até que deixou Brejo Seco e foi morar na cidade grande. No colégio, aprendeu que o dito é uma corruptela, uma deformação de “esculpido em Carrara”, por conta da má compreensão pelas pessoas menos cultas. É como se fosse uma estátua perfeita de alguém, esculpida no famoso mármore da cidade italiana Carrara, a matéria prima preferida do escultor renascentista Michelangelo. Jofre gostou da história e cita sempre que pode, só para se exibir.

De origem humilde, o rapaz é bonito, viril e musculoso, características que lhe renderam convite para se exibir no anonimato num clube feminino, na exclusiva boate frequentada por mulheres liberais ansiosas por vingar as escapadelas dos noivos e maridos. Não é o trabalho dos sonhos, mas rende boas gorjetas que lhe permitem pagar o curso superior.

Certa tarde, na biblioteca da faculdade, uma jovem tentava alcançar um pesado livro na estante. Jofre, bem mais alto, pegou o tomo para ela. Mãos se tocaram, olhares se cruzaram, ela sorriu timidamente e murmurou um “obrigado” quase inaudível. Ele levou o livro até a mesa, sentou-se ao seu lado, tentou entabular conversa e foi advertido com vários “psius” da bibliotecária, provocando mais sorrisos acanhados na jovem. Em vez do número do telefone ou do “sim” para se encontrarem mais tarde, conseguiu apenas um “a gente se vê”, e seu nome: Graziela.

Naquela noite, na boate Très Jolie, algumas amigas comemoravam o aniversário de uma delas. A noitada também levantaria o moral da aniversariante, abalado pelo recente divórcio, fruto da canalhice do marido, responsável pela gravidez da diarista e da secretária do sogro, seu patrão. O processo foi traumático e as amigas queriam devolver-lhe a alegria de viver. 

Jofre iniciou a aguardada performance com o corpo brilhando por causa do óleo aromático. No rosto, máscara estilo Zorro e muito glitter. Vestia apenas uma minúscula tanga pele de tigre e com rabinho. Quando notou que a aniversariante era Graziela, pensou: Que safadinha! Faz-se de difícil na biblioteca e solta a franga na boate. Oculto pela máscara, pouca luz e fumaça de gelo seco, fez sua melhor performance e recebeu aplausos frenéticos. As normas da casa são rígidas quanto à postura do elenco em relação às clientes: nada de contato. Porém, ele mal entrou no camarim e foi alcançado pela hostess que disse que tinha de entreter a aniversariante por vinte minutos, parte do caríssimo pacote VIP, presente das amigas. A hostess fechou a porta e deixou o casal a sós, à meia luz.

Foram muitos beijos e abraços tresloucados. Em segundos, a tanga sumiu, bem como itens da roupa da aniversariante. Mas nada podia ser falado e nem a máscara retirada. Ouviram-se três batidas na porta. Em instantes, ela já vestida deixou o camarim. Jofre tentou recusar o cachê extra, mas em vão. Era presente das amigas e ele conhece as normas da casa.

Nos dias seguintes, o rapaz procurou Graziela na biblioteca, na cantina e por todo o campus, sem sucesso. O reencontro aconteceu por acaso, no corredor das salas de aula. Ela caminhava abraçada aos livros quando se esbarraram, sorriram e trocaram um “oi” acanhado.

  • Não me reconhece, Graziela?
  • Claro! Jofre, né? Da biblioteca.
  • Sim, e também o performer da boate Très Jolie. Surpresa?

Ele a tomou nos braços e deu-lhe um beijo tão ardente quanto aqueles de dias atrás, no camarim. Ela o empurrou, deu-lhe um forte tapa no rosto e correu. Ele não entendeu nada e foi embora aborrecido.

No domingo, Jofre e um amigo foram ao clube e ele teve outra surpresa: viu Graziela tomando sol no deck da piscina. Não uma, mas duas Grazielas, idênticas, esculpidas em Carrara. Do bar da piscina, comentou:

  • Olha lá – disse apontando discretamente para ambas. Que belas gêmeas! Foi por isso que me dei mal outro dia.
  • Não são gêmeas – comentou alguém que bebia sozinho. São mãe e filha. 
  • Mãe e filha? Incrível. À distância ou à meia luz, parece que não há qualquer diferença.
  • A da direita é a filha e a da esquerda é a mãe, apenas dezoito anos mais velha, mas carinha de menina e em plena forma física – disse o homem sem revelar que é o ex-marido e o pai.

Jofre entendeu o motivo do tapa que levou de Graziela. Virou-se para o amigo e o estranho e afirmou com autoridade:

  • Dica de quem sabe o que está falando: as duas são lindas e graciosas, mas caso um de vocês queira chegar junto, saibam que a filha é muito fresca, mas a mãe, na cama e no escurinho, é uma verdadeira doninha demoníaca no cio. Fui.
Laerte Temple
Laerte Temple
Administrador, advogado, mestre, doutor, professor universitário aposentado. Autor de Humor na Quarentena (Kindle) e Todos a Bordo (Kindle)

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