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segunda-feira, 22 de julho de 2024

Neurofilosofia: “sobre eutanásia psiquiátrica”

Em janeiro de 2018, Aurelia Brouwers, holandesa de 29 anos, escreveu em sua página noFacebook as seguintes palavras: “Estou me preparando para a minha viagem. Obrigada portudo. Não estarei disponível a partir de agora.”. Quatro horas após a informação postada, a jovem, entre amigos e parentes, deitou-se e bebeu um composto prescrito por seu médico, para morrer. Sua morte ocorreu na cidade de Deventer, na Holanda, um mês depois que o Estado lhe concedeu o direito de morrer sob a lei da Eutanásia e do Suicídio Assistido, que permite à pessoa morrer quando há sofrimento tido como “insuportável e intratável”. No caso de Aurelia, porém, não se tratou de doença terminal, como geralmente são os casos que envolvem pedidos de Eutanásia: Aurelia foi autorizada a dar fim à própria vida por causa de transtornos psiquiátricos.

Uma equipe da rede de TV holandesa, RTL Nieuws, passou duas semanas gravando Aurelia enquanto se aproximava da data e da hora de sua morte (2h da tarde de sexta-feira, 26 dejaneiro). A equipe relatou que em um quadro branco, na sua casa, ela riscava os dias que faltavam  com uma pesada caneta preta, e chegou a dizer: “Eu tenho 29 anos e escolhi, voluntariamente, ser submetida à Eutanásia. Escolhi isso porque tenho muitos problemas de saúde mental. Sofro de maneira insuportável e sem esperança. Cada suspiro que eu dou é uma tortura …”.

Aurelia havia sido diagnosticada com o Transtorno de Personalidade Bordeline, entre a infância e adolescência, e outros diagnósticos psiquiátricos se seguiram. Na véspera de sua eutanásia, Aurelia passeou de bicileta com amigos e fez outras coisas, como uma despedida, aparentemente se sentindo bem mais aliviada… Seu caso não foi o único; já somam cerca de 80 casos de eutanásia para pessoas acometidas de transtornos psiquiátricos. Em todos os casos de eutanásia, faz-se necessário que um médico ateste a “total impossibilidade de cura ou de significativa melhora”, e que o paciente expressou de “vontade livre”, no exercício de “inteira capacidade mental”, a sua decisão. Tais prerrogativas se encaixam mesmo em casos de transtornos psiquiátricos? Transtornos psiquiátricos não nos afetam a capacidade de “enxergar” a vida? A palavra “transtorno” é formada por TRANS (através) mais TORNAR (virar) com a conotação de “ultrapassar um ponto de equilíbrio gerando alguma condição caótica”.

Como a Neuropsiquiatria Analítica vê a prática da Eutanásia para transtornos psiquiátricos? Antes de responder, preciso informar que a Neuropsiquiatria Analítica (NPA) resultou de pesquisas ao longo de muitos anos, vindo a ser divulgada com a puplicação do livro “NPA – Ensaio Propositivo de Neuropsiquiatria Analítica”, de minha autoria. A NPA vem atraindo a atenção de profissionais de diversas áreas da Saúde, pois se apresenta como um bem estruturado conjunto interdisciplinar, auxiliando no entendimento e na atuação frente a distúrbios que, em NPA, são chamados de “distúrbios biopsicossociais” ou “fisiopsicossociais”.

Em NPA se remonta as origens da mente humana, desde o período mais primitivo, e faz que se entenda que nossa percepção da realidade é diferente da própria realidade, pois mesclamos nossas várias “experiências sensóriais-mnemônicas”, e as interpretamos de um jeito singular, em um tempo “presente-retrospectivo-prospectivo”. Vamos tentar uma explicação melhor sobre a questão “tempo”: o grande filósofo Sêneca, disse:” Há pessoas que não param de se atormentar com lembranças das coisas passadas; outras se afligem pelos males que virão. É tudo absurdo, pois o que já aconteceu não nos afeta e o futuro ainda não nos toca. Devemos contar cada dia como uma vida separada”.

Estará, Sêneca, com arazão?

Uma vez que “tempo” é “abstração simbólico-maremática” para se administrar o melhor possível nossos afazeres, não existindo na realidade concreta, não há essa separação de “passado”, “presente” e “futuro”, de maneira que é bastante natural sermos afetados pelas coisas já feitas e pelas que podem ou não, se realizar, além das que agora acontecem. Se formos pôr a vida do ser humano em termos de “tempo”, seria correto dizer que “o tempo humano é um presente-retrospectivo-prospectivo”, pois o que agora se faz é pautado em dados, informações, em tudo o que foi aprendido e, de algum modo, assimilado _independentemente de se positivamente ou negativamente_ com vistas às possibilidades, ao que deveremos ou não deveremos fazer.

A vida é demasiadamente complexa para caber em observação tão simples como a proposta pelo grande Sêneca. Mas vamos adiante no que se refere à “eutanásia psiquiátrica”: a prática da eutanásia no meio psiquiátrico decorre _por um lado_ da intensa vontade de a pessoa acabar com o sofrimento das pessoas que a amam, as quais ela, semelhantemente, ama, pois entende que o seu profundo sofrimento faz tais pessoas sofrerem profundamente. Podemos dizer que se trata muito mais do “sofrimento de estar fazendo outros sofrerem” do que de um suposto sofrimento totalmente individual, sem qualquer significado interacional.Todo transtorno psiquiátrico é interacional, além de fisiológico. Há, na pessoa, um sentimento de culpa que parece esmagá-la! Por outro lado, tal eutanásia não seria uma demonstração da incapacidade das intervenções médicas frente ao gigantesco desafio que se lhes apresenta? Em casos como o de Aurelia, devemos observar que somente se toma a atitude de dar fim à vida quando surge “aprovação” legal e o entendimento daqueles com os quais se convive. O aspecto do “desejo de aprovação” já demonstra a força de uma subjetividade e isso _do ponto de vista moral, ético_ é suficiente para invalidar a ação da eutanásia em tais casos. Uma pessoa em tal condição “não enxerga” claramente o que está se passando com ela, tendo ampliadas, por força de suas subjetividades, as suas dores; sua solicitação de eutanásia, portanto, pode ser entendida como, apenas, parte de um contexto sintomático, e não uma “vontade legítima”. Seria menos vergonhoso para o sistema de Saúde e, talvez, até uma atitude correta, legalizar o direito ao suicídio à toda e qualquer pessoa, do que fugir, tão covardemente, dos desafios apresentados por tais casos. Não parece-lhe uma grande vergonha e mesmo um ultraje à própria Medicina, a legalização da eutanásia da forma como essa se fez, apoiando-se na falsa “vontade consciente” do paciente que está sob o domínio de uma angústia tão severa?

É indubitável que a Neuropsiquiatria Analítica vem trazendo um entendimento mais amplo e, consequentemente, explicativo, dos transtornos biopsicossociais de modo geral. Agora sabemos que nossas experiências sensoriais-mnemônicas se dão _como já demonstrado_em um tempo que, em NPA, chamamos de “presente-retrospectivo-prospectivo”, isto é, que acontecimentos presentes são perpassados por “lembranças biopsicossociais” e pelas projeções do possível, com cargas afetivas, e que impactam, de diversas maneiras, nosso comportamento. Um evento que comprometa a “estrutura de significados” de uma pessoa, por contrariar em demasia o seu padrão de interpretação da vida, gera um trauma. A palavra “trauma” tem origem no Grego ??????, que se traduz por “ferimento”. O trauma é uma espécie de “ferimento na estrutura biopsicossocial” que constitui o ser humano. Mediante a NPA sabemos que não há nem mesmo um só trauma puramente psíquico. Podem haver, por outro lado, traumas puramente físicos, pois um “desligamento afetivo” ou “bloqueio emocional”, por exemplo, pode acontecer, no momento em que a parte física é afetada. Porém, tal coisa é muitíssimo rara, própria de pessoas acometidas de alguma lesão cerebral ou, por exemplo, “neuropatias periféricas”, que causam perda de sensibilidade; trata-se de uma afetação nos chamados “nervos periféricos”, responsáveis por enviar à medula e ao cérebro e vice-versa, informações referentes aos estímulos recebidos do meio externo. Não havendo dor, bloqueia-se o “fluxo sensorial-mnemônico” e, por isso, a pessoa não gera significado à tal experiência, de maneira que um trauma ou transtorno “psico-emocional” se torna praticamente impossível em casos deste tipo, oque não significa que, ao longo do tempo, em algum nível, não possa desenvolver-se um transtorno dissociativo, exatamente pela ausência de significado (no) e (para) o fato, devido a “ruptura entre fato e afeto”. O ser humano precisa significar suas experiências; a ausência de sentido pode, com o tempo, se tornar pior do um sentido ruim. Mas é importante ressaltar que o transtorno dissociativo é mais comum em casos traumáticos, com forte “impacto sensorial-mnemônico”, porque uma situação traumática costuma ser recalcada. Convém, neste ponto, observarmos que, um trauma, nem sempre tem origens em algo negativo e, de certo modo, sempre tem relação direta ou indireta com ocorrências positivas. Ótimas experiências, de forte e positivo impacto emocional, podem gerar traumas, transtornos e somatizarções diversas, caso sejam impedidas de sua continuidade, principalmente quando esse impedimento se dá de maneira abrupta. Voltando a questão das neuropatias, para ampliar o entendimento: convém ressaltar que tais ocorrências se dão pelo fato de os nervos não conseguirem enviar “informações relacionadas às modalidades” de sensações de dor, frio, calor, tato, vibração etc., em diferentes graus de insensibilidade em certas partes do corpo. Outra observação muito importante: o grande erro da maioria dos terapeutas, principalmente psicanalistas, que ignoram os estudos de Sigmund Freud em neurologia, é o de se fixar no que se convencionou chamar de “psiquê” (ou “mente”) como se o ser humano não fosse uma “estrutura perpassada pelos aspectos biológicos” (ou “genéticos”) além dos aspectos psicossociais. Os traumas são possíveis porque há intercâmbio entre corpo, ambiente (ou “meio”) e sensações nominadas que ocorrem no “presente-retrospectivo-prospectivo”. No que se refere ao corpo, não se deve, aliás, negligenciar que há “memória celular”. Todos os eventos, principalmente os de mais forte impacto na “estrutura de significados”, geram respostas fisiológicas vinculadas às experiências sensoriais-mnemônicas.Tais respostas ou reações químicas são a liberação de adrenalina e cortisol, por exemplo, que são hormônios que tendem, mediante estímulos, preparar o corpo para enfrentamento ou fuga.

Considerando o potencial de memória celular, uma criança _por exemplo_ que passou por situações de abusos sexuais, tende a “reações físicas mais ou menos automáticas”, quando alguém abraça-a ou, digamos, pega em suas mãos ou toca-lhe no ombro. Em tais ocasiões, geralmente, a criança afasta-se ou incolhe-se. Essas e outras reações, como explosões emotivas sem consciência das causas (recalcamento), podem perdurar ao longo da vida, causando danos às relações de amizade, de cooperação no trabalho e, principalmente, afetivas-sexuais. Sobre o “caso Aurélia”, que aqui representa todos os demais referentes à eutanásia por transtornos psiquiátricos “tidos como insuportáveis e insolúveis”, podemos levantar, para questionamento, o fator “experiências sensório-mnemônicas”, que geram um intenso abalo na “estrutura de significados”, intensificando, geralmente, possíveis fatores genéticos. De qualquer modo, pode ser possível _seja por assim dizer_ uma “reestruturação da estrutura de significados”, para uma vida menos desconfortante. Sobre a legitimidade ou não, da eutanásia em tais casos, vale observarmos que não há uma só pessoa que possa, genuinamente, desejar morrer. Quando se atenta contra a própria vida, sempre é para “livrar-se” de uma circunstância que se mostra _sob o ponto de vista da pessoa em tal circunstância_ como insuportável. A “morte” que, ao cometer suicídio _incluindo eutanásia_ se busca, é a de “alguma circunstância ruim, que encontra-se tão viva, tão cheia de força, ao ponto de ameaçar de morte a vida subjetiva do indivíduo”.

Reitero: jamais se quer acabar com a própria, e sim, com “o sofrimento de uma vida que já se afigura _ao indivíduo_ como morta”.

Freud, inicialmente, desenvolveu a teoria de que todas as ações humanas atendem ao que ele chamou de “Pulsão de Vida”, buscando o prazer na realização de desejos e preservação da própria existência, conscientemente e inconscientemente como no caso dos sonhos devido o recalque. Freud, porém, observando que muita gente busca também o sofrimento e a morte, não apenas de modo inconsciente, mas também conscientemente, acrescentou um conceito que chamou de “Pulsão de Morte” (do Grego: ???????, transliterado corretamente “Thánatos”). Assim, acrescentando o conceito de “Pulsão de Morte”, imaginou ter resolvido a aparente contradição em sua teoria. Mas, ao contrário do que nos disse Freud com essa mudança em sua teoria, não há uma “pulsão de morte”. Quando a morte, em vez de ocorrer naturalmente, é buscada, isso se dá por uma “pulsão de vida que já não encontra saciedade na vida que se tem”. Quando já não há Vida (com V maiúsculo) na vida de uma pessoa, ela, sufocada, pressionada por essa “Vida latente e expansiva por dentro”, “aprisionada no âmago do ser” por não encontrar meios de se expressar, “estoura esse mesmo ser”, que se perde na ânsia de se encontrar de um modo que já não lhe é ou que lhe parece já não ser possível.

É extremamente necessário que se entenda a “Pulsão de Vida”, pois nenhuma outra pulsão há, e ela mesma leva a pessoa à salvação ou à perdição. À ela dá-se, também, o nome de “Libido”, que é, não somente “princípio de prazer” como disse Freud, e nem se vincula unicamente à sexualidade, mas é, também, “princípio de dor”, pois uma coisa pressupõe a outra e há mesmo demonstrações irrefutáveis sobre o “princípio de prazer e de dor”, que tem seu começo no que Freud chamou de “fase oral” _com uma correção feita em NPA: a “fase oral” não se inicia após o nascimento, quando o bebê é amamentado, e sim, na gestação, pois a tecnologia de nosso tempo, como ultrassonografia, por exemplo, nos mostra o bebê, no útero, sugando, ora os dedinhos das mãozinhas, ora os dos pezinhos, e certamente o bebê, ainda no ventre, é afetado também negativamente, experimentando dores, no caso de a gestante estar em algum sofrimento, como, por exemplo, agressões físicas e emoções de forte impacto.

A Psicanálise abriu um universo de possibilidades, de maneira que os profissionais terapeutas não podem continuar parados no tempo, presos nos rudimentos teóricos como se fossem teorias absolutamente prontas e infalíveis, ao ponto de não ser possível elevá-las a outros patamares. O presente texto se destina a ser uma espécie de “aguilhão”, para estimular as consciências ao questionamento de fatos tão importantes à existência humana. Espero ter alcançado alguns “terrenos férteis…”, para que, junto a mim, outros profissionais levantem voz e tomem as atitudes necessárias às mudanças que o atual cenário da Saúde tanto precisa… E que se dê mais atenção a aftoktologia (ciência, ou estudo do suicídio) do Grego ?????????? (transliteração: aftoktonía, que se traduz “suicídio”) mais “logia”, do Grego ????? (transliteração: lógos, cuja tradução é”razão”, “discurso”, “estudo”, “ciência”), visto que, inclusive entre profissionais da medicina, principalmente psiquiatras, o índice de suicídio vem crescendo, assustadoramente…

Ressalto que, sendo a “estrutura de significados” da pessoa, algo tão importante para a questão da possibilidade de suicídio, devemos atentar muito mais à Neurofilosofia, no que refere-se às reflexões sobre questões neurofisiológicas e a relação com o ambiente. Em Neuropsiquiatria Analítica a Neurofilosofia é de gigantesca importância!

Obs.: convido você a participar de um grupo de estudos em NPA, administrado por mim. O link é https://www.facebook.com/groups/7345963448764068/?ref=share_group_link

Autor:

Cesar Tólmi – Filósofo, psicanalista, arte-terapeuta, pós-graduando em Neurociência Clínica, escritor e idealizador da Neuropsiquiatria Analítica, integrada aos campos clínico, forense, jurídico e social.

E-mail: cesartolmi.contato@gmail.com

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