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Cara de bandido- uma crônica

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Dona Rosângela de Albuquerque Pereira, sentou-se a limiar beirada entre a poltrona mais à esquerda e o começo dos trilhos do comboio número vinte de sete do recém construído Leblon. A macia e alta estrutura de seu assento encaixara-se perfeitamente com o corpo de pera idosa que Dona Albuquerque carregava. Era velha de seus setenta anos, na aparência e nos costumes. Era filha do último barão de São Paulo. Respirava perfume e pó de talco que frequentemente usara para encobrir suas crescentes rugas que se entrelaçavam em um fino e pontiagudo nariz que sempre mirava os céus da arrogância e da luxuria. Sempre bem vestida, Dona Rosangela pálida como a cal, ajustou a barra do vestido Prada quarenta e cinco bordado em linho Celta azul confortavelmente entre suas genitálias e a base do assento. Aprumou seu chapéu, rodando-o firmemente no crânio oval e suntuoso de senhora. Apertou o laço florido no canto do punho que levava desde que sua filha morreu o usando. Respirou fundo jogando o corpo luxuoso pelos ombros e assistiu o fluxo de transitantes da estação pela quadrada janela de seu privilegiado assento. Ninguém era digno de pouco mais de alguns míseros segundos de sua atenção. A única coisa que agradava a velha era o ouro trabalhado, provavelmente vinte e oito quilates, que formavam foices contornando o vão entre o teto e parede do comboio.

Mariana Hortência De Sá e Silva despediu-se da mãe, saindo do Opala verde musgo ainda intacto por não ultrapassar os dois quilômetros de raio da circunferência do trajeto que o automóvel sempre fazia, delimitando o desgastar-se. Apressou o passo. O trem partiria em pouco menos de cinco minutos e Mariana já não podia perder a chance, novamente, de ver o seu avô que não passaria de alguns meses de hospital. Chega a estação espavorida, mas ao mesmo tempo, carregando a elegância que só os vinte e dois anos são capazes de produzir, assim como o dinheiro, característico de sua família, capaz de comprar. Loira dos olhos azuis. Corpo fino e magro como estátua do Louvre, seus cabelos cortados milimetricamente em Chanel, espalhavam-se ao vento que riscavam um dourado cor de marfim quando tocavam seus capilares. A pressa fez com que um laço bordado em rosas caísse da cabeça que, dentro do carro, fizera no meio do caminho a estação. Uma preta mão o pega. Mariana, difundida pela pressa, não o vê.

Dona Rosangela, pisca os olhos enrugados cada vez mais lentamente. Sua mania de sempre chegar aos lugares de compromisso meia hora antes não a ajudara naquele momento. Ela gozava do privilegio de não se importar com o tempo. Não se suportava sozinha em casa e sempre saíra mais cedo que era necessário. Quase dormindo, ela levanta sua cabeça para uma expressão vindo de fora. -Cuidado aí, mocinha-disse um cansado operador após ser vítima da pressa de Mariana. Ela cai e o derruba. Causa alvoroço.

Amontoa os papéis que carregara e, sem pedir escusas, continua correndo ao trem que logo logo partiria. A velha já não tinha mais sono. Via na recém conhecida donzela ambos, sua juventude luxuosa e sua filha igualmente loira, magra e encantadora. Emocionou-se ao lembrar do acidente. Enxugou os olhos com um lenço. Aprumou-se novamente em estado de pantera e conferiu se ninguém a havia visto em tal estado de fraqueza. Ninguém o fez. Voltou seu olhar à janela. Não via mais a loira jovem que outrora fizesse com que seus olhares se entendessem por mais de cinco segundos, como era de praxe. O trem lotava-se de gente a essa altura. Os assentos foram sendo preenchidos até que restasse apenas um ao lado da velha. Mariana volta ao campo de vista de Dona Albuquerque, mas dessa vez, bem à sua frente. Pegariam o mesmo trem. Mariana suada senta-se ao lado da velha, ajeita o blazer rosa que é logo percebido por sua companheira de viagem com enorme esmero. Passa a mão pelas louras mechas e percebe que não havia ali o seu habitual lenço.

-Que infortúnio! -exclama a jovem para a surpresa da velha que planejava seguir em total silêncio-perdi o presente de minha mãe que ganhei há só três dias, pronuncia rindo.

Sorrindo com dificuldade a velha torce pela primeira vez o rijo pescoço de gralha para, enfim, acenar com a cabeça na direção de Mariana um gesto de correspondência e falsa compaixão. Voltou a olhar pela janela. A jovem, vendo sua tentativa de iniciar uma conversa falhar, também observa o que se passa fora do trem. Dona Albuquerque ainda tem seus pensamentos fitados na jovem.

A estação era, a todo momento, abarrotada de transitantes como de costume para um bairro recém construído. O Leblon não chamava a atenção de curiosos, era um ambiente importante. O cordão umbilical da cidade. Ligava todos os pontos, traçando-os em nós de ferrovias. Não havia apenas a elite como a jovem e a Dona Albuquerque, havia todo tipo de gente. Trabalhadores cansados, ricos, classe média, morados e estrangeiros passavam pelo menos uma vez ao dia na Estação trinta e três que, diga-se de passagem, não ligava apenas a cidade internamente, mas, revolucionária, ligava todo o estado a sua capital. Ambas tinham como destino cidades além da origem.

A disposição já estava feita. Mariana ao lado do corredor e, a sua direita, a velha Albuquerque, encostada na janela entreaberta. O trem dava sinais que se preparava, aquecendo os motores, para partir. Dona Albuquerque, já impaciente, reabre a janela para tomar um ar fresco. Ela coloca a enrugada mão para o lado de fora da luxuosa janela da cabine que mais servia de um portal entre dois mundos distintos. Sente a brisa leve pesar por entre seus dedos que resistem, brincando com o balanço do sopro. O sono passara, a pressa acabara e sua mente agora estava em seu destino, calmo e tranquilo.

Uma mão vai de encontro a dela. Essas, em contraponto aos anéis de ouro e esmeralda, brilhavam não pelo luxo, mas pela graxa. Um preto, um preto de uns doze anos. Uma preta criança que aparentava, pelas roupas largas e o olhar afundado em olheiras, trabalhar desde que o sol nascera. -Preciso de alguns trocados para comer- estendia a mão brilhante pela pobreza a velha que mantinha um olhar arrogante- a senhora teria? Dona Rosângela de Albuquerque Pereira, num salto metafísico de transição dos pensamentos, encolhe as mãos ao peito, assustando até o pobre preto, que se desculpa. As rugas se esticam, as orelhas se contraem e os nervos saltam. Com o silêncio de um abafado grito, a velha se espanta pela pobreza, pelas mãos, pela audácia daquela pobre criatura que se atrevia a interromper sua viagem. -Não, não tenho- responde secamente, já acalmando as rugas que voltam aos seus lugares. -Mas a senhora est… -Já disse que não, moleque- Com um grito, a velha impõe seu distanciamento de classe não antes percebido pelo preto que, agora, encolhia-se em sua insignificância. O trem começava o seu movimento. A velha ignorava a criança que, novamente, pedia desesperadamente matar sua fome. A fumaça sobe, o carvão já queima em brasa estalante, as rodas giram em fervor. O menino, ainda sem perder a esperança, corre seguindo a janela da velha e clamando por alguns trocados. A velha, já incomodada, ignora com asco. O trem ganha velocidade, o menino aperta o passo e grita. Mariana, que já tinha pegado no sono, acorda de seu breve cochilo e, olhando o que causava tal incômodo, inclina-se saindo de trás da velha e se deparando com a cena de um preto correndo ao lado de seu comboio. O menino a vê e franze a sobrancelha como se a conhecesse. Ainda correndo e quase caindo, ele diz ofegante -Você! O lenço, é seu- estendendo a mão, ele joga pela janela já quase toda fechada pelo incômodo da velha o objeto em questão que é, assustadamente, recebido por Mariana que, sem entender a situação, agradece. A velha percebe o lenço. Não somente Mariana parecia sua falecida filha, mas o lenço que ela carregava em homenagem a ela no pulso todos os dias, também carregava, copiosamente, os cabelos da jovem. Um flash passa por sua cabeça. O trem agora ganha velocidade o suficiente para despistar o menino que é observado se distanciando pela janela do comboio. Os olhos dele ainda têm fome. Mariana arruma o cabelo agora devidamente amarrado. Dona Albuquerque olha estática para o pulso que carrega o lenço e o guarda silenciosamente. Seus olhos se enchem de lágrimas e ela rapidamente os seca. A velha se ajeita, cobre o rosto marejado de tristeza, põe-se novamente em posição aristocrata. Recompondo-se, diz para Mariana- que carinha de bandido.

O bandido tem cara e a crônica começa somente aqui. O resto é descartável. A introdução é meramente simbólica. Podemos entender Mariana e a velha Albuquerque, assim como o preto que nem nome tem, como classes. Classes de uma nação de bandidos. Bandidos com caras que se moldam à medida que os olhos que os veem mudam. O bandido, assim como o preto da estação, muitas vezes tem fome. Ele ficou. Julgado pela velha e estático em sua interna fome, ele ficou. Afastava-se pelo espelho lentamente, diminuindo-se em ambos, tamanho e significância. A cara do bandido não é só a cara de preto, é também a cara do malandro- não sendo o caso do nosso faminto-que não anda pelos palácios públicos seguindo todas as etiquetas. Muitas vezes anda se balançando e parece nunca ter tido vez para nada. A dificuldade da classe da velha reside na empatia, ou melhor, na falta dela, na falta de consciência de classe, mas sobretudo, na dificuldade de entender quem trabalha por que deve trabalhar e aquele que não consegue.

A viajem continuara. Mariana olhava com gosto e esmero o lenço recém recuperado. A velha seguia imponente em posição de matriarca. Não podia perder a classe da aristocracia paulista que nunca chorava frente às ocasiões públicas. Não ousaram expressar uma única palavra. O silêncio era grotesco, pálido e inconsistente. A senhora Albuquerque estava acostumada com o silêncio, já que vivia em meio às etiquetas da vida que a necessitava manter, por muitas vezes, a classe do não falar. Mariana, em contrapartida, mesmo sendo também da alta classe- já que era filha do maior empreiteiro paulista- era jovem. Inquieta. Frenética, suas pernas pulavam sobre os joelhos redondos e ossudos a um ritmo de um motor V8. -Por que disse bandido? – se direcionou, finalmente para a velha. -Ele é- disse a senhora Albuquerque cruzando fortemente os dedos em suas próprias mãos enrugadas sem olhar diretamente para Mariana que ainda a encarava enquanto ajustava seu lenço. -Ele queria comer- retrucou a jovem, espavorida. -Não compraria comida. Conheço essa espécie, um bandido. -E como você os diferencia? -tentou dialogar a jovem Mariana, apertando seu coração que começara a desabrochar certa empatia pelo preto. A velha não respondeu. Não porque não queria, mas porque não sabia. Aí reside o problema. A classe julgadora não conhece os réus desse tribunal injusto e obscuro. Tratam-nos como animais. A velha era carregada de preconceitos e esses, por sua vez, eram cegos, cegos até mesmo quando os bandidos a ajudam, ajudam sua classe mesmo que seja somente por recuperar um lenço. Qual era o motivo do preto recuperar o lenço? Isso só o preto pode dizer. Provavelmente, a essa altura, se teve o infortúnio de encontrar outra matriarca como Albuquerque, está morto. Morto de fome. Talvez por perceber que Mariana carregara anéis de ouro puro em seus dedos, talvez por perceber a sua beleza característica da elite, talvez por ser apenas bom, talvez por ser um bom preto, um bom bandido. Ao preto, nasceu quem o matou. Morreu quem fez nascer a classe de seu assassino. Entender é sempre limitado, escreveu Clarice. A velha limitava-se em seus preceitos

A viajem chegava ao fim. Mariana mascava algumas gomas e as estouravam em bolhas ruidosas que incomodavam Dona Rosângela que, logo após levar um soco nas costelas com a pergunta da jovem e não saber respondê-la, ainda permanecia calada, refletindo. A velha não sabia mais o que era. Nem ela nem o preto eram compreendidos por sua mente enrugada. Pela primeira vez, Dona Rosângela de Albuquerque Pereira, filha do Barão Joaquin de Albuquerque Pereira, última baronesa viva do estado de São Paulo, percebeu que era conterrânea de uma mesma espécie daqueles que tanto detestava. Pertenciam ao mesmo livro. Ambos eram só nomes em um caderno repleto de muitos outros, barões ou bandidos. A mente da velha, mesmo com o corpo ereto e duro, amolecia e definhava-se, pois, há anos talvez, não pensara dessa forma. A velha percebe uma lágrima abrindo espaço entre o talco que permeava a pele. Mariana nota também. Dona Rosângela chora pela primeira vez em dezessete anos, desde a morte de Helena. A jovem não sabia o que, ao certo, fazer. Permaneceu calada como se em luto. Ouviam-se os trilhos batendo nas amarras de ferro, as pedras que voavam contra a janela, o vento que cortava o ouro do luxuoso vagão e o choro fino e corrosivo da velha. Cessou. -Minha filha, disse se dirigindo a Mariana, morreu em um confronto armado. Mariana olha pela primeira vez a velha nos olhos, os notando marejados. A baronesa prossegue. -Eu a perdi no dia do meu aniversário. Ela vinha do exterior e chegava em São Paulo após doze anos. A partida dela sempre foi dolorosa para a família, mas nós sabíamos que era o certo. Uma jovem necessita de bons estudos. -A velha, olhando novamente pela janela dura e fria que agora cruzava um túnel, tira do bolso o lenço que antes guardara. -Veja, é um lenço idêntico ao seu. -Ela agarra a mão de Mariana que parece desconfortável com tão brusca mudança de humor e, ao mesmo tempo, igualmente comovida com e como a velha. Ela continua. -Foi um tiro na cabeça. O funeral teve de ser com o caixão fechado. A última imagem que tive da minha filha foi essa, estirada no chão com a cabeça entreaberta. Só pude recuperar o lenço graças a eficiência da perícia que concluiu o fato de o projétil partir de uma arma não cadastrada. Era dos bandidos. Nunca soube quem matou minha Helena.- A velha, enfim se dirige a Marina que a devolve o lenço e só agora percebe que esse era manchado de sangue em um dos lados da costura interna. Também a jovem, sem a classe da matriarca, encontrava-se em singelos e finos prantos, do mesmo modo como Helena o fazia. O silêncio reina novamente, agora vestido de preto, em luto.

A jovem aristocrata, comendo as próprias e gastas unhas que indicavam essa ser uma prática comum, percebe o parto prematuro do preconceito da velha e a origem da fala “que carinha de bandido” há algumas horas proferida ao preto esfomeado. O preto era dessa classe, oprimida, bandida aos olhos fundos de Dona Albuquerque que teve a filha morta por indivíduo preto e bandido semelhante. Mariana sentia pena. Pena de Helena por perder tão subitamente a vida, pena da velha por perder Helena, pena do preto por perder alguns trocados pois foi julgado bandido só pela cara. Cara essa que, como afirmou a velha, nunca a viu, já que o assassino ainda era e continuaria sendo um mistério. A cara de bandido era fruto da imaginação fértil, idosa, enrugada, promíscua e eternamente enlutada da velha baronesa que agora, magicamente, encontrara-se novamente em posição real, o que causava mais estranhamento. Talvez ela se tornou tão fria após a morte de Helena, pensava a jovem.

Percebendo não falar nada desde o começo melancólico do melancólico relato de Dona Albuquerque, Mariana secamente profere escusas, dizendo quieta- eu sinto muito.

-Não sinta, disparou prontamente a idosa, não sinta. Sinta daquele menino que sofreu calado com o meu mau secreto. Ambas se rearranjam em suas poltronas. Mariana ainda tem os pensamentos em Helena. A velha ainda tem seus pensamentos no preto.

Ouve-se, enfim, um apito, seguido por uma voz que berrava- estação quarenta e sete- era a parada da jovem. -Essa é a minha, disse. A baronesa, percebendo a real situação passageira e momentânea de uma clássica viagem de trem, lamente internamente que irá perder novamente uma jovem loira, magra, elegante e polida. -Rosângela de Albuquerque Pereira, diz a velha, notando só agora que não se apresentara anteriormente.

– Mariana Hortência De Sá e Silva, dispara prontamente, já de pé, arrumando a barra do vestido que se amarrotara em meio a duas horas de viagem. -Como disse, essa é minha partida- A velha acena com a cabeça, a jovem repete. Vira-se em direção à porta recém aberta, seguida por uma frenagem que a faz perder o equilíbrio e correr as mãos em uma das barras douradas do vagão. Ela, sem perceber, derruba seu lenço uma segunda vez. A velha nota. Estática, lembra de Helena morta, o crânio jorrava sangue que formava uma linda aquarela com o azul do tecido. Não havia preto que pegasse o lenço dessa vez. Não havia preto que penetrasse Mariana com uma bala. Havia a velha. Prontamente, sem ajeitar o vestido como era de costume após se levantar, caracterizando urgência no ato, Dona Albuquerque se curva ao chão, apanha o lenço e dispara -Mocinha, seu len…- Mariana já, entre as viagens da lenta mente da velha, havia partido. Mariana nunca mais seria vista. A senhora encontrava-se assim, com o cabelo caído no rosto pela subida mudança de equilíbrio, com os dois joelhos tocando o chão, assim como as mãos que também seguravam o pedaço órfão de pano. Sentiu-se abalada. Estática, a velha chora novamente. Seu egoísmo e classe exacerbadas fizeram com que ela perdesse para sempre, novamente, uma filha. Assim como Helena, Mariana deixou apenas um lenço e saudades. A velha perde outra filha, dessa vez, uma filha que a ensinou tratar seus preconceitos.

Dona Helena, ainda abalada e com os olhos borrados de pó e lágrimas, senta-se em sua poltrona luxuosa. Ela percebe que o luxo, a essa altura, não serviu de nada. Era chora uma segunda vez, agora pensando na cara do bandido faminto do começo da viagem. O choro lhe causa dor de cabeça. A velha pega no sono.

-Estação final! – ouve-se um segundo berro. A velha acorda, um tanto perdida nas horas que se passaram desde que apagara no braço do vazio assento de Mariana. Era sua deixa. Mal se lembrava, após tanta coisa, de onde iria. Mesmo assim, recordava-se de precisar desembarcar antes do trem voltar ao Leblon. Ela ainda segura o lenço da jovem que agora residia-se no mesmo pulso que carregava um idêntico tecido de sua falecida filha. Sua mão esquerda, agora, a lembrava da perda de duas moças, Helena e Mariana. Levantou-se. Ajeitou o vestido, aprumou o chapéu, retocou o pó de arroz que outrora encobria suas visíveis e aparentes marcas da idade. Embaçou os óculos e o esfregou com a manga direita, o pôs nos olhos e partiu-se. Seus saltos batiam no chão e rugiam sua classe. Sua mente, em contrapartida, estava ainda no trem, em Mariana, no lenço. Pensou estar sonhando. Beliscou-se. Nada ocorrera, era a mais pura realidade. Às vésperas de seu aniversário e, consequentemente, da morte de Helena, ela se encontrava duplamente em luto. Eis que uma mão pequena impede seu caminhar, agarrando a barra de seu vestido. Torna-se para o lado, raivosa, mas logo de emociona. Era um preto, uma preta criança.

Com roupas largas e um olhar que pedia mais do que alimento, retruca -teria algumas moedas? Tenho fome. A velha se encolhe. Pela primeira vez em vida, abaixava-se em uma insignificância grotesca. Lembra-se do trem, da sua partida, da sua filha e de Mariana.

Respirando fundo diz- tenho, meu anjo- tira um punhado de cruzeiros do bolso, entrega ao menino, dá um beijo que é prontamente correspondido com um sorriso sujo e um caloroso abraço. -Tome isso, disse a velha, vai te esquentar a cabeça quando precisar. Estendendo a mão, ela dá ao preto o lenço de Helena que fora desamarrado do punho. Levanta. O preto vai embora pulando. Perdia ali outro filho, um filho bandido. A baronesa Rosângela de Albuquerque Pereira sobe a escadaria iluminada pelo sol da tarde fresca daquele mês.

Apruma-se novamente. Sai em posição ereta, riga e clássica. Continua sua viagem seja para onde for, agora de luto por três filhos.

Autoria:

-Dmitri Ivanovna, Eldorado-MS, 15/5/2023, 20:46

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