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terça-feira, 10 de setembro de 2024

26 – O delegado

– Era tudo o que eu não precisava…

Duarte, olhando desanimado para o cavaleiro que está apeando em frente a delegacia. Alto, porte atlético, um bigode fino, ar severo. Sua indumentária era toda negra… inclusive as luvas que usava. Aquele senhor entrou  no recinto, segurando seu chapéu na mão. Fitou Duarte nos olhos, e com voz firme o cumprimentou, explicando a que veio.

– Sou o Delegado Vicente Lia, enviado do comando da Capital… o senhor sabe porque estou aqui, não?

Duarte fitou o teto da delegacia e deu um grande suspiro… claro que ele sabia porque haviam enviado aquele delegado para sua cidade… os crimes misteriosos só aumentaram nos últimos tempos… depois que enterraram o estranho semi morto, mais três cadáveres apareceram no arraial. Dois sem sangue e um sem os órgãos internos. De nada adiantou o doutor Alberto enviar laudos positivos para sua chefia… na verdade, isso quase custou seu cargo quando veio à tona que ele não registrava as “causa mortis” corretamente… Foi preciso muita conversa, tanto dele quanto do delegado, para que a chefia imediata do médico não o exonerasse do cargo. E foi aí que enviaram esse delegado especial. Afinal, se tinha algo de errado na localidade, era preciso investigar. E para a chefia lá na Capital, parecia que isso não estava sendo feito… e se estava, o serviço era muito mal feito, já que vários crimes ocorreram pela localidade e os agentes da lei não tinham a menor pista do ocorrido. 

– O senhor sabe que estamos investigando esses casos já a alguns meses… não sabe?

Duarte deu um longo suspiro. Claro que sabia. Afinal, o serviço secreto do Governo investigava qualquer coisa fora do anormal que ocorresse por aquele sertão sem fim. E era justamente por isso que ele e o doutor Alberto tentavam dourar a pílula em seus relatórios… queriam distancia dos investigadores do Governo Central…

– Doutor Duarte, o senhor teve quase vinte casos inexplicáveis aqui em sua jurisdição… e não relatou nenhum deles… por quê?

Duarte continuava de pé, pensativo. O que iria responder para esse almofadinha da Cidade Grande? Que os casos eram estranhos demais para constar em relatório? Que ele não tinha a menor ideia sobre como falar dos casos ocorridos? Como explicar uma coisa que o senso comum afirmava ser  apenas crendice popular, sem nenhum embasamento na vida real? Como explicar, por exemplo, um morto que não estava tão morto, assim? Quem iria acreditar em um relatório desses? Se ele colocasse isso em seus registros oficiais, com certeza teria sido destituído a um bom tempo… se bem que, ao que tudo estava indicando no momento, sua exoneração não tardava…

– Eu sei o que o senhor está pensando, Doutor Duarte… pode ficar tranquilo, eu não vim aqui substitui-lo… na verdade, a minha missão é te ajudar a resolver essa encrenca na qual estamos todos envolvidos! Terminado esse caso, eu vou partir… afinal, não é só a sua cidade que tem casos misteriosos para resolver…

Duarte olhou para o homem, intrigado… como assim, ele não viera ali para substituí-lo? Pelo andar da carruagem, Duarte já se via na fila dos desempregados, contando com a boa vontade de algum fazendeiro que o empregasse como vaqueiro ou jagunço… mais provável a segunda opção que a primeira, já que ele era mais familiarizado com as armas que com o gado… bem, de qualquer forma, saber que seu emprego não estava em risco… ainda… lhe trouxe um certo alívio. Era melhor colaborar com o sujeito à sua frente, e torcer para que conseguissem resolver o problema o mais rápido possível, afinal, quanto mais rápido resolvessem o caso, mais rápido aquele delegado iria embora…

– Ainda que mal lhe pergunte, doutor… porque o senhor veio aqui para Berizar?…

– O senhor já deu uma olhada nos casos ocorridos na região, Doutor Duarte?

Duarte coçou a cabeça… não, nunca tinha posto reparo nos casos fora de sua cidadezinha… já tinha trabalho demais tentando manter a ordem em toda a sua jurisdição com apenas dois ajudantes… onde iria arranjar tempo para ficar cuidando de casos de outros?

– Bom, como tenho certeza de que o senhor não se deu a esse trabalho, vou lhe explicar… a maioria dos casos ocorreram em volta de sua cidade. Foram vários locais… mas sempre em volta de Berizar… então, nada mais lógico que começar a investigação por aqui, não acha?

Duarte suspirou, desanimado… não, ele não achava nada lógico investigar o que quer que fosse em seu arraial… investigar o que? Histórias de assombração contadas pelos matutos daquele rincão? Boi tatá, mula sem cabeça, mulher de branco… tudo invenção daquele povo supersticioso…

– Doutor, eu…

– Olha, Doutor Duarte… eu sei que as coisas parecem meio estranhas… mas se tem uma coisa que aprendi durante minhas idas e vindas por esse sertão é que existem mais coisas caminhando por esse mundão de Deus do que a gente pode sonhar… já vi muita coisa que não dava prá explicar… mas que estava acontecendo diante de meus olhos. Então, quando a gente está tentando resolver uma situação, depois de descartar todas as soluções lógicas, tem que investigar as ilógicas, também… 

– Eu…

– Entenda uma coisa… por trás de uma história da carochinha sempre tem algum fundo de verdade. Eu sei que correm boatos de pelo menos três tipos de monstros rondando Berizar…. O Papafigo, A mulher de branco e um terceiro, que ninguém sabe ainda o que é…  são historinhas prá boi dormir?  É provável… mas os crimes estão acontecendo, então a gente tem que investigar isso também, já que a linha de resolução lógica não nos leva a lugar nenhum…

– Tudo bem, doutor… a gente vai investigar isso… está tudo muito bom. Mas por onde a gente começa?

– Que tal começar conversando com os curas e os benzedores da região? Se tem algum que pode responder algumas de nossas dúvidas, com certeza é esse pessoal…

– O senhor só pode estar brincando…

– Não, estou falando sério… quando o possível se torna impossível, a gente torce para que impossível seja o possível…

– Agora que não entendi nada…

– Simples, delegado… a gente vai investigar o sobrenatural… é a única coisa que nos resta… ou seja, não temos escolha!

Duarte concordou com a cabeça, com um olhar desanimado… agora não ia mais apartar briga de cachaceiro no final de semana… ia caçar lobisomens e outros bichos… se falassem pra ele quando assumiu seu cargo que um dia iria correr atrás de seres do outro mundo, simplesmente iria rir da cara de quem falasse isso… e agora…

– Alguma dúvida, delegado?

– Não, doutor… tudo certo…

– Então vamos…

– Prá onde?

– Primeiro, para a Igreja… precisamos conversar com o cura…

E os dois ganharam a rua, deixando um ajudante cuidando da delegacia. Duarte ainda se sentia meio constrangido com a situação, mas como sempre dizia… “o que não tem remédio, remediado está…”  

27 – A encantada

 Duarte estava começando a se irritar… afinal de contas, Vicente parecia não se cansar. Já haviam visitado o padre do arraial, uns cinco benzedores famosos da região e um tanto mais de pais de santo. A todos ele fazia perguntas e ouvia as respostas com toda a atenção. Aparentemente, estava levando a sério aquela história de fantasmas e outros bichos… a história que deixou Duarte mais nervoso foi a da mulher que aparecia em noites de lua cheia e atraia os incautos até o rio, onde os abatia, sugando todo o seu sangue… coincidência ou não, todos os corpos sem sangue foram encontrados na beira do rio, ou próximo a ele. Quando Duarte perguntou a um dos pais de santo como seria essa mulher, recebeu um olhar de desprezo… como eles poderiam saber? Nunca ninguém que encontrara a tal mulher ficou vivo para contar a história… tudo bem, ele pensou… mas se ninguém que a encontrou escapou vivo, como é que sabiam que era uma mulher? Vicente olhou meio torto para ele, mandando a mensagem “cala a boca, deixa eles falarem”… E Duarte ficou em silêncio, sem mais perguntas… Já era noite alta quando Vicente se deu por vencido e resolveu encerrar as entrevistas do dia… tinham cumprido um expediente puxado. Estavam saindo da casa de Pai João, um benzedor com fama sem igual. Conhecedor das doenças deste e do outro mundo, tinha sempre um remédio para o que quer que fosse… sempre acompanhado de uma reza e uma benção. Já estavam ganhando o portão do terreiro quando o preto velho chamou os dois e lhes entregou um amuleto para cada, recomendando que deixassem sempre pendurado em seu pescoço, para contarem com a proteção contra as forças do mal… Vicente agradeceu e colocou logo seu amuleto… Duarte ficou olhando por algum tempo para aquilo… mas mais uma vez o olhar de Vicente fez com que ele fizesse aquilo que era esperado. Pai João rezou, benzendo ambos os homens, e se despediu, dizendo a eles que enquanto mantivessem seus amuletos não precisariam temer as forças ocultas desse mundo… e lá foram eles caminhando pelas ruas do povoado, conversando sobre tudo o que haviam ouvido durante o dia.  Duarte não conseguia entender para que aquilo tudo iria servir. Afinal, “nunca tinha ouvido tanta besteira junta num lugar só”… mas essa noite ele começaria a mudar de ideia sobre o mundo do além…

Fazia já umas duas horas que os dois conversavam enquanto caminhavam pela orla do rio… de propósito ou não, Vicente guiara seu companheiro de investigação para aquele local que parecia ser uma das chaves para resolver parte do mistério. Era noite de lua cheia. Era a noite da encantada…  

Segundo um dos benzedores, “a encantada” era uma moça que ficara noiva, mas no dia de seu casamento foi traída pelo noivo com sua amiga… como vingança, ela sangrou os dois e bebeu seu sangue… isso a amaldiçoou para todo o sempre, ela foi condenada a viver no rio e em noites de lua cheia precisava saciar sua fome de sangue… e era aí que atacava os incautos… não discriminava ninguém… homem, mulher, gordo, magro, novo, velho… quem passasse em seu reduto nas noites de lua cheia servia para saciar sua fome…

– Seu Vicente, o senhor não acreditou realmente naquelas besteiras que a gente ouviu…

– Que besteiras, Duarte?

– Essas, da mulher encantada, por exemplo…

– Porque?

– Oras, porque… não tem nenhuma lógica…

– O que é que não tem lógica, Duarte?

– Isso… de ser uma assombração a responsável pelas mortes que estão acontecendo…

Vicente parou. De sua algibeira puxou um saquinho com fumo picado, pegou uma palha de milho e começou a enrolar um cigarro. Acendeu, tirou uma baforada. Estendeu o material para fazer cigarro para Duarte, que aceitou e repetiu o gesto de seu parceiro. E assim ficaram algum tempo, em silêncio, fumando seus cigarros tranquilamente. Quando a bituca já estava quase alcançando os lábios de Vicente, ele a jogou com um piparote, e o pequeno resto do cigarro caiu nas águas do rio. Ainda em silêncio, ele olhou para o céu, tirou seu chapéu e ficou como se estivesse rezando. Duarte o fitava, sem entender muito bem o que se passava. Finalmente Vicente terminou sua reza, recolocou seu chapéu e convidou o parceiro a se sentar em um tronco de árvore caído. Depois de mais algum tempo calados, Vicente quebrou o silêncio que reinava entre os dois….

– Me diz uma coisa, Duarte… você não nasceu aqui, não é mesmo?

– Não… eu vim da Capital…

– Então é um cabra letrado…

– Sim… estudei Direito em Coimbra…

– Uau… foi além mar… não gosta das Academias de nossa terra?

– Não é isso… é que meus pais são de lá… e eu queria conhecer as terras de meus ancestrais….

– Mas lá também há lendas sobre o mundo do além… na verdade, boa parte das histórias que ouvimos por aqui vieram de lá…

– Vicente, você é um homem esclarecido… lendas são historinhas para assustar as crianças… 

– Posso te falar uma coisa?

– Claro…

– Até a pouco tempo atrás eu corria por esse sertão perseguindo bandoleiros…

– E não é o que o senhor faz até hoje?

 – Sim, mas eu fazia isso para vingar a morte de minha família…

– Não entendo…

– Bom, eu usava uma máscara… e acabei me metendo em algumas encrencas por causa disso…

– E usava máscara porque?

– Já expliquei… era sinal de luto pela minha família…

– Espera… você não é…

– Por muito tempo eu cavalgava com o Corisco…

– … Juvêncio? O Justiceiro?!!!…

– Sim, era assim que me chamavam…

– E como o senhor entrou para a polícia?!

– Bem, um dia cruzei o caminho do Doutor Aristides…

– O Federal?

– Ele mesmo… e aí me convenceu a deixar aquela vida de aventureiro sem eira e nem beira e usar meus conhecimentos da vida sertaneja a serviço da Lei…

– Mas o senhor já lutava pela lei…

– Não… eu lutava pela justiça… e algumas vezes acabava indo contra a lei…

– E aí o senhor entrou para a polícia…

– Sim…

– E aquele rapaz que o acompanhava?

– Foi por ele também que aceitei a oferta do Delegado. Paramos de correr por esse sertão e o rapaz foi estudar…

– E o que ele faz hoje?

– É um Delegado Federal, como eu…

– Uau… por essa eu não esperava… e onde ele está hoje?

– Bem, o senhor sabe… temos alguns problemas lá prás bandas da Bahia… ele foi designado prá lá…

Duarte ficou pensativo… sempre achou que o Juvêncio, de quem tanto ouvira falar, era apenas uma lenda do sertão… e agora, lá estava ele, em carne e osso na sua frente…

Estavam os dois observando as águas calmas do rio, quando de repente sentiram seu corpo se arrepiar. Aos poucos uma figura fantasmagórica começou a surgir nas águas que se tornaram um redemoinho… a noite parecia ter ficado mais  escura, as estrelas pareciam ter sumido do céu… era como se um manto escuro tivesse sido estendido por todo o firmamento… a figura começou a tomar forma humana… mas era simplesmente horripilante. Cabelos que se assemelhavam a serpentes, olhos que pareciam duas brasas, de tão vermelhas e brilhantes e uma língua bifurcada, como a das serpentes… mas conforme ia se aproximando da margem, sua figura ia se modificando. Quando colocou os pés na terra da margem sua aparência havia se modificado totalmente… agora era uma linda garota, com olhos que emanavam uma tristeza sem fim… e começou a caminhar em direção aos dois companheiros….

Autora:

Tania Miranda

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