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terça-feira, 27 de agosto de 2024

Os filhos devorados das revoluções

Acho que a gente subestima um pouco a memória infantil. Da minha época de colégio, nos primórdios de algum contato com as coisas do mundo através dos livros, ficou uma gravura no canto direito de um livro de história mais ou menos assim: uns homens em frente a um paredón, um deles de camisa branca e mãos levantadas e todos em frente a um pelotão de fuzilamento. Na legenda, algo que me escapa, dois pontos e “Goya retratou assim”. Sei lá, o olhar de desespero do personagem principal da foto, o tom familiar que a simplicidade do conjunto sugerem, o sentimento de legião implícito aos perpetradores, sem rosto mas de uniformes, e tudo isso ao mesmo tempo meio que imprimiram aquele pequeno quadro de seus – estimo – três por cinco centímetros na minha memória.

Anos mais tarde, topei com outras referências do mestre espanhol. Das que vi, a que me pegou mesmo foi a obra que retrata Saturno devorando seu filho. Infelizmente, não foi em Madrid que tive o prazer de tomar nota da existência, e mais infelizmente ainda dessa vez não me recordo quando a vi pela primeira vez, só sei que vi e jamais pude esquecer aqueles olhos arregalados e arqueados de remorso obstinado. O pequeno corpo humano, agarrado com ódio e parcialmente já consumido dão um arremate trágico na mente do observador e garantem: vocês nunca mais vão esquecer essa imagem.

Se a descrição pareceu sombria, a inspiração da pintura e ao que na minha humilíssima visão ela pode corresponder na realidade igualmente o são.

Saturno foi avisado por Hera que um dos seus filhos tomaria seu lugar, assim como ele fez com Urano, seu pai. Daí, arrumou de simplesmente dar cabo da vida de cada rebento que lhe chegasse. Eventualmente, sua esposa Reia esconde um dos filhos recém-nascidos antes do destino trágico planeado pelo pai e este vem a ser Júpiter, que de fato toma o lugar do pai.

E se tem uma coisa que as artes e a mitologia servem e sempre serviram ao ser humano foi de fornecer verdades atemporais sobre o próprio ser humano, mais do que sobre deuses e o mundo físico. Nesse caso, e creio que concordando com Dostoiévski em alguma medida, enxergo que as tomadas violentas de posição ou poder se concretizam por meio que normalmente vitimam os próprios tomadores iniciais. Que as revoluções devoram seus próprios filhos é público e notório, mas diria até que o sentido vai até além das ciências políticas ginasiais.

Robespierre liderou o Terror (levado à prática por um órgão de nome bonito: Comitê de Salvação Pública – atenção aos nomes pomposos mas cheios de poder hein, leitor) e foi decapitado meses depois, junto com Marat e outros. Stalin inaugurou a pós verdade e inspirou Orwell: consolidou o poder usando e eliminando seus chefes de serviço secreto, eventuais rivais – nem que tivesse de ir buscá-los no México. Pra isso, alterou registros, fotos (a montagem de Yezhov é perfeita até pros dias de hoje) e nomes. Em 1956 Kruschev falou e lançou, inicialmente em segredo, todas as culpas dos excessos sobre seu antigo chefe, assim que este morreu. Mas não sem eliminar Beria, segundo muitos o verdadeiro braço direito de Stalin. Brejnev, que curioso, remove Kruschev por um golpe e o mantém em algo parecido com uma prisão domiciliar, não também sem depois retirar seu nome dos anais da Grande Enciclopédia Soviética. Repescagem interessante: no caso francês, após a balbúrdia toda, Napoleão põe ordem na revolução e estabelece ele mesmo como imperador – como todo bom revolucionário de sucesso. Sim, porque nada mais justo do que se aquinhoar na forma de mais poder aquele que buscou vencer pela ousadia, não pelo trabalho.

Temos um caso mais recente e mais jornalístico também. Pelo que me consta não está bem esclarecido, mas o ex-presidente Hu Jintao teria saído escoltado de um congresso do Partido enquanto tentava ler um documento. Como tudo o mais, muitas perguntas, mas uma coisa é evidente: nada pode ficar no caminho do futuro hipotético e perfeito – talvez perfeito porque hipotético, até.

Por essa e por outras, toda vez que vejo alguém de bandeira, qualquer que seja ela, em punho gritando palavras de ordem em favor de um progresso inevitável, desde que seja ele mesmo o fiel depositário desse mesmo poder, já viro as costas pra parede e fico me perguntando quantos meses vai levar até ser devorado pela próxima geração que ajudou a criar.

Autor:

Mário Pereira

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