Um dos pontos polêmicos no debate eleitoral atual é sobre a inocência de Lula. E curiosamente o debate não é se Lula cometeu os crimes de que é acusado ou não, mas sim o seu atual estado jurídico.
O que sabemos com certeza é que os processos que condenaram Lula foram anulados devido a incompetência e parcialidade de Sérgio Moro. E ao voltar para a primeira instância se considerou que os crimes foram prescritos. Portanto Lula não foi absolvido das acusações. Para muitos isto significa que Lula não foi inocentado pela justiça, apenas teve a condenação cancelada.
Contudo esta análise não é compatível com um dos princípios básicos do direito, que é a presunção da inocência. Lula só perderia o status de inocente após a condenação transitada em julgado. Até isto acontecer, ele é inocente.
Apesar de usarmos o termo inocentado como sinônimo de absolvição, na verdade a absolvição não inocenta ninguém. A absolvição apenas considera a acusação como improcedente. Não se pode inocentar alguém que não é tido como culpado.
Aniello, a justiça brasileira não apresentou provas que Lula é inocente, você diria. De fato, não. Contudo aí temos uma questão que vai bem além do direito, e tem por base a lógica. A questão do ônus da prova. E entender isto terá sua utilidade muito além de analisar a inocência de Lula ou não.
Dentro do direito o ônus da prova sempre recai sob a acusação, ou seja, quem tem a necessidade de comprovar legalmente algo é quem acusa que algum crime ocorreu. Isto não se deve apenas por causa da presunção da inocência, mas principalmente da dificuldade lógica que é comprovar que algo não aconteceu.
Para algumas situações até é possível comprovar que você não fez algo, como por exemplo apresentar um álibi para um crime ocorrido em local e hora específico. Mas em outras situações é quase impossível comprovar que você não fez algo. Como, por exemplo, comprovar que você nunca contratou alguém para executar o crime realizado. Para tal seria necessário comprovar todos os seus atos em praticamente toda a sua vida.
Agora voltemos a política. Voltemos a Lula. O debate acerca de se Lula foi inocentado ou não com o cancelamento de suas condenações não é um debate jurídico. Para a lei ele não teve uma condenação definitiva, portanto é inocente. O debate na verdade é se nós, eleitores, devemos considerar ele culpado ou não.
Obviamente todos tem direito a qualquer opinião, e podemos até mesmo discordar de condenações e absolvições da justiça. Por exemplo, Collor foi absolvido pela justiça das acusações de corrupção em seu mandato de presidente, mas quase certamente a maioria dos que acompanharam seu mandato estão convencidos do contrário.
Devemos estar atentos para nosso hábito de inverter o ônus da prova. Primeiro há uma enorme tendência de desconfiarmos por princípio de políticos poderosos. Estamos acostumados a tantos escândalos que culturalmente que para nós políticos de alto escalão já começam no mínimo como suspeitos.
E considerando os anos de denúncias seguidas de escândalos comprovados na gestão PTista, fica difícil crer que Lula sequer sabia dos desvios ocorridos. Parece muito estranha a hipótese que ele não estivesse envolvido. Neste sentido é legítimo desconfiar da inocência de Lula, ou até defender a sua culpa. Mas fica o alerta do ônus da prova. Lula não precisa provar sua inocência.
Agora que tal irmos para fora do direito? A dificuldade de provar que você não fez algo é válida para todas as situações. Imagine se você tivesse que comprovar para sua cara metade que nunca traiu o relacionamento? Como fazer? Ou comprovar que você nunca esteve no Japão?
Isto pode parecer exemplos meio bobos, mas são apenas exemplos óbvios para ilustrar um erro de raciocínio que cometemos inúmeras vezes. Quando acreditamos em alguma coisa é normal acusarmos aquele que discorda de nós de não conseguir provar que estamos errados.
Um exemplo recente bastante influente foi a defesa do uso da cloroquina como terapia da Covid,. Muitos argumentavam que apesar de não ter comprovação que funcionava, também não tinha comprovação que não funcionava, e por isto deveria ser usada. O que é especialmente perigoso para o uso de um fármaco.
Devemos ser vigilantes quanto a inversão do ônus da prova para tudo na vida. Terapias alternativas, propostas de investimento, formação de sociedades, crenças espirituais, etc. O ideal é que quando não temos motivos para acreditar em algo permaneçamos céticos até que algum motivo seja apresentado. Não cometamos o erro do ufólogo de supor que todo objeto não identificado tem de ser uma nave alienígena.
E, para terminar de forma provocativa… Temos vários motivos para querer acreditar que somos seres importantes, diferentes dos demais animais, privilegiados por Deus e o ápice da criação, ou então os seres mais evoluídos da Terra. Será ousado demais pedir um pouco de ceticismo quanto a isto? Talvez um pouco de humildade em admitir que podemos ser apenas mais uma espécie na enorme árvore da vida possa servir para nos colocar em nosso lugar. Será que não somos apenas um macaco sem pelos que tem a característica especial de conseguir pensar sobre si mesmo, e também o desejo de ser mais que um macaco. Provas que somos primatas não faltam. Mas onde estão as provas que somos algo além disto?