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quarta-feira, 24 de abril de 2024

Único elo comum entre Rússia e Ucrânia na guerra, o uso das criptomoedas 

É um fato que as guerras têm um efeito devastador no mercado de ações. Seja na Segunda Guerra Mundial, na guerra Indo China ou a mais recente no sudeste europeu, o mercado de ações globalmente sempre teve de suportar o peso dos distúrbios geopolíticos, que ocasionam enormes perdas financeiras país regiões que por vezes não estavam no meio do embate e claramente, de forma bastante assídua para os envolvidos. Não obstante, desta vez, existe um novo elemento que deve ser analisado nesse conflito, fator esse que vem ganhando os holofotes da macroeconomia internacional e que está sendo utilizado de diversas maneiras nesta guerra entre Rússia e Ucrânia – tanto de maneiras positivas, como também negativas, as criptomoedas.

Jamais anteriormente, havia sido visto um papel similar ao qual as criptomoedas estão desempenhando nos contornos desta guerra. Papéis esses que impactam diretamente o cotidiano daquelas pessoas que vivem diariamente essa destruidora realidade e que muitas vezes, precisam de uma solução emergencial para sobreviver. Nesse aspecto, há duas narrativas contrastantes nas notícias em relação a isso: 

• Positivo: As criptomoedas são uma grande oportunidade para o povo ucraniano garantir pagamentos, apesar das infra estruturas bancárias em colapso, bem como para manter seus próprios ativos seguros; e para as pessoas, o governo ucraniano e as ONGs receberão rápidas doações internacionais apoiando sua luta contrainvasores russos. 

• Negativo: As criptomoedas e a tecnologia blockchain estão enfraquecendo as sanções contra a Rússia, já que o governo russo, a economia russa e os oligarcas ainda podem usá-las. 

No início do conflito, a situação não estava nessas configurações. Com as falas do presidente Vladimir Putin indo contra o combate armado e a incredulidade de grande parte dapopulação mundial, os ucranianos demorar para tomar iniciativas, visto que não tinham noção da proporção, do tempo e da forma e quando ocorreu, os mercados locais – assim como alguns setores específicos, não estavam preparados. O panorama após esse começo incerto se apresentou assim: 

• Os investidores estocavam criptomoedas. Por exemplo, o Bitcoin aumentou o preço no início da guerra em mais de 28%, de cerca de US $34.300 para mais de US$44.000, de acordo com a plataforma Coinbase. Tornou-se visível que especialmente na Rússia e Ucrânia, o comércio de Bitcoin aumentou significativamente. Contudo, o aumento de preços foi apenas de curto prazo e, entretanto, o preço voltou aproximadamente aos níveis pré guerra. 

• As transações entre o Rublo Russo e as criptomoedas dobraram desde o início da guerra, atingindo US $60 milhões por dia, de acordo com Chainalysis. Na Ucrânia, a exchange cripto Kuna até triplicou seu volume diário de transações temporariamente. 

Lado vermelho 

O Banco Central russo havia solicitado a proibição das criptomoedas, em janeiro de 2022, especialmente o Bitcoin. Pouco mais tarde, no início de fevereiro, o governo e a principal entidade financeira do país, haviam chegado a um consenso e concordado em legalizar criptomoedas como o Bitcoin e reconhecê-las como uma moeda. Enquanto isso, como consequência da invasão à Ucrânia, a Rússia foi excluída do sistema de comunicaçãoSWIFT. Além disso, o governo russo, empresas russas e vários indivíduos e oligarcas foram colocados na lista de sanções e, portanto, foram excluídos de grande parte do sistema bancário e de pagamento internacional. 

Nesse cenário, tornou-se fundamental entender neste momento que negociar criptomoedas baseadas em tecnologias blockchain não são sancionadas em um termo puramente tecnológico. À medida em que a troca de dinheiro fiduciário e criptomoedas (do rublo russo para o Bitcoin através de exchanges centralizadas como a Coinbase) pode ser regulamentada e sancionada, a negociação ou troca de criptomoedas (Bitcoin para Ether em exchanges cripto descentralizadas como a Uniswap) não pode ser sancionada. As sanções só podem ser implementadas se a identidade puder ser verificada. Atualmente, isso só é possível em exchanges de criptomoedas centralizadas regulamentadas através de requisitos de KNOW-your-Customer (KYC). Curiosamente, um dos países que adotou esse modelo é a Alemanha. 

Enfim, cada transação no blockchain é completamente transparente. As criptomoedas geralmente não são completamente anônimas, mas meramente pseudônimos. Os provedores de pesquisa, análise ou forense existentes, já se especializaram em rastreartransações supostamente anônimas em conexão com atividades ilegais. Por exemplo, as agências de aplicação da lei estão monitorando grandes movimentos de bitcoin entre diferentes endereços de criptomoedas ou carteiras. A probabilidade é atualmente muito alta de que muitas dessas transações de grande volume se originem dos oligarcas russos que estão sendo sancionados. 

Devido à transparência, moedas de privacidade como Monero ou Zcash ganharam atenção adicional após o anúncio das sanções contra a Rússia, que por sua vez se refletiu no preço de mercado. Antes, o Bitcoin também era visto como uma moeda de privacidade. No entanto, a crescente integração das criptomoedas em sistemas de pagamento centralizados existentes e estruturas regulatórias – incluindo requisitos de KYC, tem diminuído cada vez mais o anonimato a esse respeito. 

Moedas de privacidade ao contrário de outras criptomoedas usam técnicas para tornar transações quase completamente anônimas. Esses ativos, por sua vez, podem não ser um veículo ideal para contornar as sanções em uma escala maior, já que o volume de transações de privativos provavelmente não seriam suficientes e, claro, também escaláveis. 

Outro ponto é que o Monero, por exemplo, nos dias atuais não é prático o suficiente, vistoque, não pode ser usado como meio de pagamento seguro como os Bitcoins, justamente pela falta de aceitação dos recebedores. 

Desse modo, parece haver provavelmente maneiras mais fáceis e menos transparentes para o governo russo e os oligarcas contornarem as sanções além das criptomoedas. Soluções alternativas como transações via países terceiros parecem ser mais viáveis do que uma conversão completamente anônima e não rastreável em criptomoedas, transações nãorastreáveis correspondente (em pequeno volume), bem como a conversão de volta em dinheiro fiduciário em exchanges de criptomoedas centralizadas não regulamentadas. Exatamente por isso exigiria a identificação de KYC. 

Até o momento, as criptomoedas parecem ser usadas principalmente em casos de uso em pequenos volumes por indivíduos privados russos. As criptomoedas não parecem ser uma solução viável de curto prazo para as empresas contornarem as sanções, uma vez que faltam requisitos do sistema na infraestrutura de processamento de pagamentos. 

Segundo o professor Dr. Sandner, do Centro de Blockchain da Escola de Frankfurt, levaria de seis a doze meses para essa conversão do lado do sistema para pelo menos partes da economia russa, a fim de poder processar criptomoedas para pagamentos das empresas. Ademais, pode-se supor que, devido às sanções, quase nenhuma empresa nos países ocidentais correria o risco de se tornar responsável por processos mediante a aceitação de criptomoedas de empresas ou indivíduos russos. Ou seja, exigiria a KYC assumida, em mercados cripto regulamentados. 

Entretanto, a Rússia também poderia se juntar à moeda digital chinesa (Yuan digital), oucontinuar a trabalhar em seu próprio projeto CBDC. Devido ao debate atual sobre o papel das criptomoedas para contornar as sanções, Mykhailo Fedorov, o vice-primeiro ministro da Ucrânia e ministro da Transformação Digital do país, pediu a todas as exchanges de criptomoedas centrais que bloqueassem todos os endereços dos usuários russos. Binance, Kraken e Coinbase, algumas das maiores exchanges de criptomoedas do mundo, anunciaram que não bloquearão as contas de todos os clientes russos, pois isso violaria os princípios da tecnologia de ledger distribuído (DLT) e criptomoedas. A Binance e a Coinbase, no entanto, indicaram que fornecem suporte na medida em que bloquearão explicitamente clientes e carteiras russas que estiverem na lista de sanções ou relacionadas a “atividades ilícitas”. 

A Coinbase informou que bloqueou cerca de 25.000 endereços russos e os repassou ao governo ucraniano. Em geral, na Rússia, podemos observar um fenômeno semelhante ao de outros países: Bitcoin e criptomoedas se tornam particularmente atraentes em tempos de crise ou inflação forte. Esse fenômeno é possível de ser assistido em países como El Salvador, Venezuela e Turquia.

Todavia, as criptomoedas também não são usadas pela população em geral, mas tendem a ser usadas por pessoas mais jovens. Nesse sentido, a Rússia ocupa a 18a posição entre todos os países em termos de uso de criptomoedas pela população, conforme apontado pelo levantamento com o Global Crypto Adoption Index by Chainalysis de 2021. Por outro lado, o país também ocupa o 3o lugar entre os países com maior participação na mineração de Bitcoin em 2021, com aproximadamente 11%, de acordo com Statista.

Lado Azul e Amarelo 

O acesso à infraestrutura bancária na Ucrânia foi severamente restringido através da invasão e dos ataques da Rússia. Cidadãos e refugiados ucranianos têm tido enormes problemas para sacar dinheiro ou processar transações bancárias e pagamentos com cartão de crédito. Um exemplo disso é que, uma vez que eles chegam, na Alemanha, os refugiados ucranianos também enfrentam problemas para trocar Hryvnia, a moeda nacional ucraniana, em Euros, visto que, não existem títulos públicos de bancos para esta troca monetária, por se tratar de uma ação arriscada. 

Assim sendo, como consequência, a população ucraniana tem cada vez mais comprado e negociado criptomoedas como o Bitcoin, já que seu transporte é mais fácil, por meio da blockchain. Fora isso, outros fatores que influenciam nessa demanda são que, os refugiados ou cidadãos na zona de guerra recebem dinheiro dessa forma através de apoiadores oufamiliares, sem ter que contar com um sistema bancário funcional e que, se os cartões de crédito não funcionarem mais, as criptomoedas ainda funcionam tecnicamente como um meio alternativo de pagamento por bens essenciais. 

Inclusive, o país já havia começado a se envolver em criptomoedas antes mesmo da guerra. Em um índice global do grupo de pesquisa cripto Chainalysis no ano passado, o país ficouem quarto lugar no uso de criptomoedas por seus cidadãos.

Concomitantemente a isso, os criptoativos desempenham um papel importante para o governo ucraniano. O governo ucraniano abriu carteiras para Bitcoin e Ethereum, bem como lançou um site de doação dedicado para doações mediante esses meios, através do qual as doações podem ser transferidas e aceitas em segundos. O governo recebeu mais de US $100 milhões em doações de criptomoedas desde o início da guerra. 

Isso parece ser uma pequena quantia em comparação com os bilhões de doações dosgovernos ocidentais e do FMI. Porém, segundo o Oleksandr Bornyakov, elas tornaram-se uma importante ferramenta de guerra devido à sua alta flexibilidade e velocidade de transação, mesmo que a Rússia possa hackear infra estruturas centralizadas através de ataques cibernéticos, não pode hackear criptomoedas em blockchains públicas se armazenadas com segurança em carteiras frias. 

Além de doações via cripto, a Ucrânia está recebendo cada vez mais grandes quantidades de dinheiro via NFTs (tokens não fungíveis, um ativo digital como a arte digital que é único enão perecível). É o caso da banda punk crítica do Kremlin Pussy Riot que lançou um leilão de uma foto da bandeira ucraniana como uma NFT para doação e coletou cerca de 2.258 Ether, o equivalente a cerca de US $6,6 milhões. Outro exemplo é Wladimir Klitschko que recentemente lançou uma coleção da NFT com o artista nova-iorquino “WhIsBe” para ajudar a financiar a guerra contra a Rússia. O motivo dos NFTs, que são vendidos via Opensea, são quatro novas versões dos ursos “Vândalos Gummy” criados por “WhIsBe”. 

Mykhailo Fedorov tinha originalmente planejado responder ao alto volume de doações em criptomoedas com um airdrop. No ecossistema blockchain, um airdrop é a distribuição muitas vezes livre de ativos digitais ou tokens pelos desenvolvedores de um determinado projeto para o público ou usuários. Entende-se que essa é uma tática de marketing para aumentar a sua conscientização. No entanto, o governo finalmente abandonou esse plano e prefere trabalhar em suas próprias NFTs. 

Tais infra estruturas financeiras alternativas podem ser usadas para manter transações de bens básicos, mas também para comprar equipamentos essenciais para defesa. O governo ucraniano diz que já gastou metade de suas doações de criptomoedas em milhares de coletes à prova de balas, rações alimentares, capacetes e suprimentos médicos, deliberadamente optando por gastar os fundos em equipamentos não letais. 

Panorama geral da primeira guerra cripto 

Ademais, a intitulada pelo Washington Post, como a primeira guerra cripto, está servindo como parâmetro para fornecer uma resposta para aqueles que já perguntaram sobre os casos de uso de criptomoedas como o Bitcoin em conflitos internacionais. Olhando em particular para as atividades em torno do uso de criptomoedas do lado da Ucrânia, o seu uso está direcionado para ajudar pessoas deslocadas à força poderem atuar economicamente. Contudo, no que diz respeito ao risco de evasão de sanções pela Rússia, também fica claro que o tema da regulação e dos requisitos de KYC devem ser pensadosglobalmente de uma maneira responsável e não excludente. 

Portanto, ao avaliar as atividades em torno das criptomoedas, é essencial incluir o contexto do país. A Ucrânia é certamente uma pioneira nesse sentido, já que o país tem uma grandecena tecnológica, bem como um governo otimista nesse sentido. Os desenvolvimentos em torno do papel das criptomoedas ainda são atualmente muito dinâmicos e não totalmente transparentes e previsíveis. Continua sendo interessante observar ainda mais como o papel do Bitcoin, de outras criptomoedas e do papel da tecnologia blockchain em geral, se desenvolve durante e após a guerra pela Ucrânia, mas também para a Rússia. Acima de, tudo, só podemos esperar um fim de curto prazo e a retirada do exército russo para a paz na Ucrânia e do mundo. Ao final, a criptomoeda pode ser a chave para o fim, se ponderamos como e por quem ela deverá ser utilizada. 

Autor:

Adriano da S. Santos, Jornalista 

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