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domingo, 1 de setembro de 2024

Os urubus não esquecem


“Eu quisera ser um passarinho. Não, um passarinho, não. Uma ave maior, mais triste. Eu quisera ser um urubu.”
 (Rubem Braga, em O Conde e o Passarinho)

No Agreste de Sergipe existe um centro de criação, multiplicação e preservação de aves de rapina chamado Parque dos Falcões (só existe esse na América do Sul, segundo dizem). Em 2009, num caso que repercutiu bastante na imprensa local, indivíduos furtaram três aves do centro: um gavião-relógio, um falcão-de-coleira e Michael, exemplar da única espécie de urubu albino do Brasil. Não sei como se chamavam o falcão e o gavião, mesmo porque eles acabaram entrando como coadjuvantes na história. É que a atenção do noticiário e do público se concentrou naquele urubu que, não fosse pela sua genética singular, seria tão preto como a imensa maioria de seus primos e irmãos.

A polícia investigou o furto e, em menos de um mês, conseguiu prender os ladrões na Paraíba e no Ceará. As aves, entretanto, já estavam mortas quando foram encontradas. O gavião e o falcão morreram já durante a fuga dos bandidos; o urubu, logo em seguida. Triste notícia para quem estava acompanhando o caso, ou seja, o estado inteiro.

Quatro anos depois desse episódio, quando eu trabalhava em um município do Centro-sul de Sergipe, familiares comunicaram o sumiço de um agricultor de 35 anos de idade. Fomos ao sítio em que ele residia e trabalhava, entrevistamos dois colegas do desaparecido que estavam na propriedade rural, verificamos IML, hospitais… e nada. Mas, no decorrer das investigações, as suspeitas começaram a recair sobre os dois homens. Foi aí que, ao cabo de poucos dias, os urubus, quem sabe retribuindo a dedicação da polícia no caso de Michael, resolveram nos ajudar. Essas aves, para todo mundo ver, começaram a voar em círculos sobre determinado ponto: uma cisterna localizada no sítio em que estivemos. Resumo da ópera: encontramos ali o corpo do agricultor e prendemos os investigados, que responderam por homicídio qualificado e ocultação de cadáver.

De acordo com o inquérito, os indiciados beberam com a vítima, asfixiaram-na e, por várias vezes, golpearam-lhe a cabeça com um pedaço de madeira. Depois, visando a impedir que o corpo boiasse, abriram o abdômen do agricultor antes de jogar o morto no reservatório de água. Por fim, na vã esperança de evitar o mau cheiro, despejaram cal na cisterna e recolocaram a tampa de madeira. Nem desconfiavam que, se as aves costumam ter um olfato quase inexistente, o urubu é exceção: consegue sentir fiapos de odor de carne podre a quilômetros de distância.

Os dois indiciados viraram réus e foram condenados pelo tribunal do júri. Michael, de certa forma, estava vingado (e o gavião-relógio e o falcão-de-coleira).

Quanto a mim, fiquei agradecido a esses garis da natureza. Tive até vontade de declamar um conhecido verso de Augusto dos Anjos, porém, com um sentido contrário ao que lhe deu o mestre do pessimismo: “Ah! Um urubu pousou em minha sorte!”

Autor:

Ataíde Menezes

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