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terça-feira, 16 de abril de 2024

Afetos e linguagem

A língua sempre me encantou. A língua viva. A língua criadora de elos fraternais. Sempre me neguei, mesmo que inconscientemente, a qualquer tipo de barreira comunicativa. Quando adolescente, a moda eram as gírias. Num mural da escola, bem num cantinho sem muita visibilidade, foi pendurada “uma penca” delas: “Montar no porco”, “Picar a mula”, “Meter o pé”, “Coé”, “Caô”. Peguei todas as expressões e guardei no vestuário de palavras. Não demorou muito para que me vestisse de cada uma. Sentia-me moderna, descolada, “sacando dos paranauês” daquela roupagem, orgulhosa por dominar bem esses e outros códigos do meu grupo – que, verdade seja dita, são reduzidos, mas representam uma imensidão de afetos.

Anos depois, aprendi que o falar dos mais jovens é uma dentre as muitas variedades linguísticas existentes. De acordo com Possenti, a gramática (em uma de suas concepções) é um conjunto de regras que o falante usa no ato de se comunicar, regras naturais. Nesse sentido, os usuários da língua aplicam o que é aceitável ou não no exercício comunicativo. E, as gírias, na minha época, eram passaporte certo para o adolescer.

Na casa de minha amiga Tetê, por sua vez, havia um falar curioso: “não me alembro”, “pobrema”, “pocadiquê”, “Cês é maluco” e, até mesmo, repetição estilística, “cê, tá maluco, você?!”. Eu, por puro encanto, me tornava refém do palavrear. Desejei, então, ser da família. Para isso, era preciso o pacto de sangue linguístico… não, mais que isso: era imperativo me deixar gerar pelo mesmo ventre de palavras. Adquiri o DNA. Chamaram-me de “Franzinha”. Desde então, sou parte da linhagem das “Frans”.

Anos depois, compreendi que aquele modo de dizer pode ser explicado por fatores socioeconômicos – excetuando as singularidades/especificidades como a reiteração do pronome “você”. Muitos naquela casa sequer chegaram a terminar os estudos. Tetê talvez não saiba, mas, infeliz e desumanamente, o seu material linguístico é excluído nos espaços de poder sobre os quais fala Possenti. A propósito, o pesquisador, fazendo uma reflexão sobre as gramáticas, apresenta três tipos: prescritiva, descritiva e outra, por assim dizer, mais “usual”. Os que têm uma ideia de língua baseada na prescrição condenam com tirania variedades do tipo de minha amiga, variedade a que, ternamente, me filiei. É preciso defendê-la.

Já na faculdade, ficava perplexa com as palavras jorrando, como nas correntezas de um rio, dos lábios de professores. Cada item lexical era uma gota. Transbordavam e transbordavam junções de misteriosos vocábulos (cuja significação parecia também de outra esfera). O fluir das águas era cortado por barquinhos prepositivos: “O livro DE que preciso”, “O autor Ao qual me referi”, “O grupo DE que faço parte”. Timidamente, transitei por esse rio. As “águas me davam pelos artelhos” e, depois, “pelos joelhos”. Eram profundíssimas.

Depois descobri, ainda com ajuda de Possenti, que a variedade usada pelo grupo altamente escolarizado é a que expressa “o maior número de coisas”. O fenômeno se deve ao fato de tanto gramáticos quanto outros estudiosos da língua darem mais atenção à norma de prestígio. Documentaram-na. Fizeram esforços para uma uniformização. Estabeleceram regras. Ora, isso não quer dizer, conforme diz o linguista, que esse modo de falar expressa melhor, mas, sem dúvida, expressa muito mais – desigualdade, uma patologia social presente até na linguagem.

E as minhas andanças eram assim. Por onde os meus pés linguísticos transitavam, buscava ser uma com a comunidade local. Quando a professora nos cursinhos (ou algum guardião da língua) dizia que era preciso falar o bom português, não fazia muito sentido. Para mim, tudo não passava de imposições abstratas, não cabia em minha vontade de afetos, de inserção nos grupos, de objetivos comunicativos. Depois, descobri que minha postura já era bastante discutida e aprovada pelos linguistas, que já falavam sobre a tal da adequação. A falácia de que há erros deveria ser banida (pelo fim dos preconceitos!), pois o que ocorre são inadequações linguísticas. Para cada situação comunicativa, usamos uma variedade – bem como, para cada ocasião, um traje.

O posicionamento da minha professora era fundamentado numa visão de língua ideal, um padrão a ser seguido, mandamentos pesados demais – que até os lábios de falantes cultos também não conseguem reter. Há uma explicação: o que está nas gramáticas tradicionais é representação de uma escrita – e de uma escrita bem arcaica e altamente formal. Quanto a isso, Marcuschi, no vídeo em que compartilha reflexões sobre fala e escrita, é bem categórico: “A escrita não é uma representação da fala. A escrita é uma representação da língua, assim como a fala é uma representação da língua”. São, portanto, duas formas legítimas de representação do sistema linguístico – cada qual com sua especificidade. Minha professora revelou (e tantos outros) uma falsa consciência de língua.

Infelizmente, ideias dominantes a respeito de uma linguagem pura incham (ou estouram?) os neurônios coletivos – ideias essas elaboradas a partir de um olhar acrítico e superficial.Talvez, ainda falte uma ida generalizada das gentes até a essência da multiforme movimentação do organismo vivo, que é a língua; um trabalho em massa a fim de que sejam descortinadas as falsas ideologias (como a da existência de uma fala superior) e que a população reivindique o seu direito inato de dizer.

Autora:

Luciana Faht, Graduada em Letras
Instagram: @amoescrever2020

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