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sexta-feira, 26 de julho de 2024

Um cantinho chamado Piabetá

Quase todo mundo se conhecia. Alguns eram conhecidos por todos. O Militão era dono do armazém. Tinha também o armazém do Sato, o japonês. As crianças tinham medo do Sato, porque ele tinha um costume estranho: reunia uns amigos em um salão escuro para degolar um bode preto e beber seu sangue, diziam. Mais tarde descobri que isso tudo era fofoca do povo. É que o moço era maçom. Calil era regente da banda e mágico. Às vezes transformava uma linda jovem em Telma, a mulher-gorila. O cinema era do Leopoldo. Em preto e branco, admirávamos ali as façanhas dos caubóis. Os barbeiros eram o Antenor, o Nilo, o Zezinho e o João Português. As máquinas de cortar cabelo eram manuais. Faziam um irritante claque-claque-claque ao ouvido com o movimento frenético dos dedos dos barbeiros, que envelheciam trabalhando sem nenhum problema nas mãos. Acho que naquele tempo ainda não havia a tal lesão por esforço repetitivo. Talvez porque ainda não existisse mouse de computador. O Moisés apareceu depois. Além de cortar nosso cabelo, ele também era goleiro do Piabetá, time que tinha uniforme idêntico ao do Flamengo. Depois de um tempo, o João Português trocou de atividade. Deixou o salão e abriu um restaurante em que servia comidas que para nós eram muito estranhas, tais como guisado de tartaruga ou de testículos de touro. Regalos de além-mar, ele falava.

O cinema ficava na avenida Caioaba, que era a principal rua. Paralelo à rua, corria um riozinho. Em frente ao cinema, depois da rua e do riozinho, ficava a pracinha, que tinha um coreto onde a banda tocava em dias festivos.

No começo, só havia escolas municipais, e só com as primeiras séries do primário. Certo dia, a escola estadual chegou. Era o grupo escolar, como nós a conhecíamos. Mas não havia professoras suficientes na cidade. Elas vinham de Niterói, de kombi. Eram muito elegantes. Usavam salto alto. Estudei no grupo por dois anos. Quarta e quinta séries do primário. Minha professora na quarta série era a Maria do Rosário. Apaixonei-me por ela. Talvez por isso tenha me tornado bom aluno só a partir da quarta série. Não sei como, porque minha atenção ficava dividida o tempo todo. Enquanto ela me ensinava o m.m.c. e os afluentes do lado esquerdo do rio Amazonas, saíamos de mãos dadas a passear por bosques gramados. Eu também a levava na garupa de meu cavalo Silver. Eu tinha dado esse nome porque ele era descendente direto de outro Silver, o cavalo do Zorro. Não o herói mascarado de capa e espada, mas o Zorro mascarado caubói, aquele que com suas balas de prata dava tiros certeiros nas mãos dos foras da lei. Eu e Rosário também fazíamos piqueniques à beira de lagos azuis. Às vezes eu a salvava de índios ou bandidos com minhas habilidades de karatê ou, se eles estivessem armados, com meu revólver. Ela nunca soube dessas aventuras. Ela também não sabia, mas ao fim das aulas eu esperava no portão para ver a elegância e a graça com a qual ela conseguia caminhar na rua irregular de paralelepípedos tortos da rua Brasil, desde o portão da escola até a kombi que a levaria de volta a Niterói.

Havia muito espaço vazio na cidade, mas depois foram loteando tudo. A primeira imobiliária acho que foi a do Durval. Depois vieram a do Ranulpho e a do Salgado. Ranulpho era também presidente do Piabetá Esporte Clube. Com os loteamentos, a população foi crescendo aos poucos.

O transporte de massa era o trem, puxado pela maria fumaça. O ônibus de lotação veio depois. Num sentido, o trem ia para Raiz da Serra, depois Petrópolis. No sentido contrário, havia duas linhas, porque na estação de Piabetá havia um entroncamento: uma linha ia para Barão de Mauá, no centro do Rio; a outra, para a Praia de Mauá. Esse trecho da praia até Raiz da Serra foi a primeira ferrovia do Brasil, inaugurada em 1854 por D. Pedro I. A subida para Petrópolis veio depois e era interessante. Ao chegar em Raiz da Serra, a maria fumaça era trocada por uma que funcionava com cremalheiras, rodas dentadas, porque dali em diante era serra. A subida é empinada. O trem subia dando alguns solavancos. Naquela época ainda não havia problemas de coluna. Assim como os dedos dos barbeiros, a cervical dos passageiros do trem era mais resistente, eu acho.

O comércio era fraco e não havia indústrias, então não tinha trabalho para todo mundo.  A maioria das pessoas trabalhava no Rio. Havia também alguns que eram operários da fábrica de tecidos que ficava em Pau Grande, localidade próxima. Nessa mesma fábrica, alguns anos antes, trabalhara Garrincha. Meu tio Hélio, que morava em Pau Grande e era operário dessa fábrica, contava que ele e o craque eram conhecidos bem próximos e que de vez em quando até tomavam uma cachacinha juntos. Eu também jogava futebol. Verdade. Já joguei muito. Em quantidade, que fique claro, porque a qualidade era sofrível, confesso.

A saudade por vezes aperta o peito. Saudade da época, do lugar, das pessoas. Dá vontade de voltar para lá, no espaço e no tempo, rever amigos, talvez encontrar a Rosário, convidá-la para um passeio com o Silver ou, quem sabe, levá-la ao cinema do Leopoldo e assistir a um filme romântico com final feliz.

Autoria:

Juca Azevedo

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