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sábado, 20 de abril de 2024

Uma crônica escolar

Não lembro-me muito bem de meus anos de escola. Todavia, houve um incidente singular cuja imagem figura até hoje em minha memória.

Era pelos idos de 2006 e eu, criança em seus primeiros anos de infância estava em uma aula de português quando minha professora solicitou que eu fizesse um texto sobre três imagens que estavam em meu livro. Eram três figuras pretas sobre um fundo amarelo sem contornos que indicassem delíneos de uma fisionomia.

De pronto, sem saber que o fazia, pus-me a parafrasear Platão num texto intitulado “O Menino de Sombra”, que, ao menos em minha mente, seria uma notória obra da ficção filosófica sobre a existência humana. Falei da triste saga de um menino sem corpo, condenado a tocar em toda sua existência a imagem vazia de corporeidade das coisas ao seu redor. …Ele comia seu picolé, mas o picolé era uma sombra sem sabor de uma deliciosa guloseima gelada. Ele andava de bicicleta, mas que graça havia em, sendo a bruma do mundo, não sentir o vento sobre os cabelos?!

Verdadeiramente triste era a saga de um menino de sombra, que se tornaria um dia um homem de sombra e constituiria uma família de sombra sem corpo e sem uma forma física para chamarem de suas … Uma longa saga imaginei sobre essa triste vida parafraseante de uma Alegoria da Caverna.

-Seria possível- pensava eu – que as sombras tivessem vida? Será que sofriam? Sentiriam dor ou se diluiriam brutalmente em outras sombras maiores, perdendo, assim, a identidade somente para reavê-la num inconsistente momento em que uma criatura corpórea cruzasse inocentemente uma luz?-  Tudo isso era devaneio de criança. E eu, como criança que era, me aventurava por eles, olvidando por um instante que as aulas de português eram um macaqueio insólito de conjunções adversativas e pronomes impessoais de um olhar oblíquo e sem vida. Ali, a aula era liberdade.

-Libertas Quae Sera Tamen.– Disse para mim, pois lera isso em algum lugar e deduzira que seria uma bela frase para celebrar o momento, ainda que a similitude latina me induzisse num caminho perigoso de falsos cognatos.

Terminei o texto. Passei-o a limpo em letra bonita e arredondada. Entreguei à professora já esperando os aplausos.

Para meu enorme desgosto, porém, o que veio foi uma faceta carrancuda e retorcida de cuja boca vieram as palavras:

-Ariel! Que texto é esse? Não tem sentido nenhum. Você poderia ter escrito uma história sobre um Menino e um Picolé ou um Menino e Sua Bicicleta. Mas…um menino de sombra! Isso não faz sentido nenhum. –

Saí da escola naquele dia com duas imagens fixadas para sempre em minha mente: nem todos entendem o que é ser sombra e nem todos sabem escrever sobre meninos e picolés.

Autoria:

Ariel Von Ocker (nome social de Gabriel Felipe Montes Lima) é escritor, psicanalista, poliglota e acadêmico de Letras e História. Também já trabalhou no teatro como dramaturgo e ator. Com catorze anos escreveu seu primeiro romance e por anos seguiu escrevendo sem publicar, até que em 2021 se torna colunista no maior blog sobre psicanálise em língua portuguesa com o texto de estreia Representações Sobre o Feminino: Um Olhar Histórico. Atualmente se dedica à formação acadêmica e à divulgação da arte e do conhecimento.

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