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sábado, 27 de abril de 2024

Ode às próximas Rainhas do Brasil

Abro os olhos e vejo ruas asfaltadas, prédios que se elevam do solo, sólidos. Mansões coloridas e arborizadas, calçadas com marcações geométricas, ninguém vê água escorrendo na rua e nem gato se enroscando nos postes. Este foi o bairro onde acordei. Estava numa calçada, ainda bêbado. Noite passada foi uma loucura. Os anos preso em casa me causaram consequências que não consigo decifrar. Estava afinal no Maurício de Nassau. Que ideia boa esta de homenagear colonizadores. Ainda dizem as línguas de bem: ele transformou Pernambuco! A quem ele transformou? Caruaru não tem mais rio, não tem mais vida. Caruaru é Caruaru. Brincadeiras à parte, eu amo minha cidade, mas bem que preferiria ver mil cururus e mil caruaras a ver mil prédios cinzentos. 

Parece que chamei bastante atenção dos pequenos comerciantes que iniciam mais uma semana de trabalho enquanto um vagabundo acorda, um estudante balburdiano. Acontece que não fui jogado ali. Só que nessa madrugada eu briguei com alguém que nem lembro mais, me sentei para amarrar o cadarço do meu all star e, aparentemente, adormeci. Acordei como um belo adormecido, me sentindo contrariamente feliz e envergonhado. Uma das primeiras vezes em que fui a uma boate sozinho. Poucos sabem dessa história, mas agora é tarde, ou manhã, melhor dizendo. 

Enquanto chamo o Uber, constatando espantosamente que ainda tenho um celular e com 5% de bateria, me lembrei de uma certa vez em que fiz estágio exatamente naquela rua na qual estou parado. Ajudado, obviamente, por uma amiga que indicou o lugar a mim e a algumas amigas do curso. Foi difícil arrumar um lugar para estagiar. Aparentemente porque ser estudante de uma Universidade Federal se tornou um crime. Mas nós somos estudantes sim. Antes da balbúrdia, que eu amo, somos sujeitos outros que adentraram em um espaço sacrossanto e inalcançável em outros tempos. É exatamente por ocupar espaços de Ensino, Pesquisa e Extensão que nós temos bons resultados, pesquisas relevantes e continuamos tendo experiências muito boas. Independentemente de quem vê por fora ou por quem vê por dentro, e que, ainda assim, fecha os olhos para os avanços científicos que tivemos nos últimos anos. O problema dessas pessoas é que elas não se resolvem, e esse ódio na verdade só representa desejos reprimidos, os quais só Freud explica.  

Mas deixando essa negatividade de lado, eu vejo que o Uber já chegou e está na esquina. Caminho em direção a ele, me apresento, meio sujo ainda por conta do chão onde dormia alguns minutos atrás. Entro no carro, um gol preto, o seu motorista é bem calado, o que é bom pois eu sou do mesmo jeito. No balançar da viagem e olhando a paisagem através da janela opaca, continuo me lembrando de quando acompanhei um projeto de uma pedagoga da secretaria da mulher, sobre o resgate de histórias de mulheres patronesses do município. Aquelas histórias me tocaram muito. Poderia ser minha mãe, uma amiga, minha avó, minha bisavó, tia, prima, irmã e tantas outras mulheres que passaram ou que ainda passam no meu conviver. Para além desse sentido platônico de amizade, as histórias de vida das mulheres me fizeram atravessar as linhas habituais de pensamento sobre mim mesmo e sobre a imagem construída ao longo de tantos anos no que diz respeito à mulher, no singular mesmo. Humildemente me pus em um lugar neutro, invisível e atento a estas personagens. Passaram-se anos para que alguma pessoa pudesse se interessar e ter as condições mínimas de desenvolver uma pesquisa sobre as mulheres patronesses do município. A imagem da mulher que eu tinha era, na verdade, uma figura escondida. Não tinha apreço, não tinha memória, não tinha história. 

Basta buscarmos um pouco no fundo do baú de nossas mais remotas lembranças. Quantas histórias de heróis ouvimos ao longo da vida, seja na escola ou em narrativas passadas de geração a geração? Pedro Álvares Cabral, Tiradentes, Dom Pedro 1º, Marechal Deodoro da Fonseca, Castelo Branco, Duque de Caxias, Getúlio Vargas, Euclides da Cunha, Maurício de Nassau… etc. São infinitos. Mas e heroínas? Princesa Isabel… etc? Parece que são finitas. É aqui que caímos. Onde estão as histórias dessas mulheres? E mais: onde estão as histórias de mulheres negras, pobres, gordas, nordestinas e indígenas? 

São perguntas que me corroíam o juízo enquanto eu lia e me envolvia com tantas narrativas. Abalando a minha posição neutra e me contradizendo. Ainda hoje fico refazendo estas mesmas indagações. Isso mudou meu ponto de vista. Isso e todas as experiências que tive na universidade sobre os debates feministas, feitas por mulheres feministas. Agora me vejo como uma pessoa “privilegiada”, pois o patriarcado manteve e mantém vivo seu legado. No entanto, hoje tenho consciência que a questão nunca foi sobre Mulher, mas Mulheres, no plural e no sentido de visibilidade da diversidade e das diferenças nas relações sociais. 

Preso nessas reflexões e quase batendo a cabeça no vidro, ainda meio sonolento e um pouco embriagado, me dou conta tardiamente que perdemos sim uma heroína na semana passada. MM é o nome de um doce, mas também é de Marília Mendonça, tão ou mais doce quanto. Talvez tenha sido isso que me fez desejar aventurar e saborear novamente o ar frio e alegre da noite boêmia. Sinto que estou me achando em mim mesmo novamente, me amando, vivendo de verdade. A aura de tristeza continua, é evidente, mas as coincidências são incríveis. O fim de uma pandemia se vislumbra, ao mesmo tempo em que a Rainha da Sofrência se vai. Triste e feliz, assistindo a um velório ao vivo e esperando a aproximação dos novos anos 60. Paz, amor e cachaça! Mas seu legado ficou: empoderamento, visibilidade, humanidade, humildade, amor próprio e tantos outros elogios que eu poderia tecer aqui. 

A única coisa que me arrependo foi de ter medo de ser quem eu sou na rua, de frequentar os lugares marginais e de má fama. A minha fragilidade frente ao ódio é vergonhosa. Mas mais uma estrela se acende no céu e como em um espelho, vemos apenas aquilo que é refletido, exatamente da maneira que é: preenchido, acabado, feito, construído, completo. A folha em branco do interior que não se vê, que não se ilumina, é vazia, sem sentido, inacabada e incompleta. Somos tão precários que só podemos ver as camadas exteriores. Mas sempre existe alguma coisa a ser encontrada sob uma camada grossa de poeira que ainda não foi varrida, num assoalho velho e mal cuidado. Tão antiga como todas as eras deste mundo. É manhã de luz que não se vê, noite enunciada que a tudo vê e tudo compreende. Nessa criatura cabe tudo, inclusive a luz do parto e o anjo da morte. Suas letras vencem o tempo, suas vozes tocam as multidões. E agora do alto, o farol incandesce a fraqueza do ser e as certezas na falsidade da linguagem no corpo. Se tornou para sempre essa estrela guia a iluminar suas filhas, que aqui ficaram, eternizando momentos de amor. 

Autor:

Robson Brito

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