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quinta-feira, 18 de abril de 2024

Lembrete para não esquecer esses dias

Enquanto eu mexo no Instagram, rolando o feed, o dedo deslizando nessa Black Mirror, recebo uma notificação de um aplicativo amarelinho. Comprei alguns livros, finalmente eles devem estar chegando em casa. Quando clico na mensagem sou informado de que houve um problema com a entrega e eles tiveram que remanejar o objeto para uma agência dos Correios da cidade. Não tem jeito, vou ter que sair de casa.

Sem vontade de nada, me levanto, tomo um banho e visto uma roupa para sair na rua. No rosto levo a máscara, na bolsa levo meu Kindle, um guarda-chuva e um frasquinho de álcool e gel. Me parece um dia estranho, está tudo tão silencioso, ninguém na rua, só algumas almas perdidas. Desço a ladeira, atravesso calçadas malfeitas e desniveladas. As ruas do meu bairro viraram um deserto. Sinto que estou esquecido de alguma coisa, mas hoje deve ser domingo eu acho, deve ser por isso. Relaxo e continuo andando. Atravesso mais algumas ruas e chego à avenida principal, tudo fechado. É muito esquisito isso. Espero quase uma hora no ponto de ônibus.

Finalmente ele chega, todos de máscara. Uma cena que se tornou corriqueira nos últimos tempos, mas que sempre carrega um peso, uma ausência de alguma coisa que se perdeu e não volta mais. Dá até saudade de ver tantos rostos estranhos dentro do transporte coletivo e público. Mas todos os rostos estão tampados, alguns até bem escondidos. Como é o meu próprio caso. A meses, no começo da pandemia, achei na internet um tipo de máscara bem grande e com alguns produtos químicos, que eu não entendo como funcionam, só sei que agem sobre o vírus e o matam, pelo menos foi isso o que foi indicado por algumas pesquisas da USP. Além de possuir um design interessante para quem usa óculos como eu, com ela a minha visão não fica embaçada pela forte respiração abaixo de um pedaço de tecido. Ao longo do percurso fico pensando nesse meu privilégio e no fato de trabalhar/estudar ainda à distância. De repente me dou conta que no domingo os correios são fechados. Que raiva, meu próprio inconsciente deve ter armado uma fake news. Mas espera aí, hoje é terça-feira.

Nessa confusão mental chego no meu destino. Dou sinal, o motorista pisa no freio, abre a porta e eu desço. Ele faz uma curva fechada alguns metros a frente, pela direita, e eu sigo na mesma rua, atravesso duas calçadas perpendiculares e dobro à esquerda. Algumas senhoras com vestidos floridos e óculos escuros estão do outro lado da calçada, carregam flores e caixas de vela. Religiosas indo para algum culto ou missa, com certeza. Quando chego em frente à agência dos Correios me deparo com a porta fechada. O que está acontecendo? Será que é feriado? As lojas do comércio fechadas me respondem positivamente e sem piedade. Faço a conta mentalmente, hoje é dois de novembro, dia dos finados. Atravesso a rua e fico no ponto de ônibus pois logo logo o mesmo veículo que peguei vai fazer uma volta e passar exatamente ali, fazendo o percurso de retorno ao meu bairro. Me sento na calçada e me perco em devaneios.

O meu inconsciente é hoje coletivo. Esqueci que havia essa disparidade entre vivos e mortos. Foram mais de 600 mil assassinatos. Vidas que se perderam, famílias que se desestruturaram. Prometi a mim mesmo que quando tudo voltasse ao normal a primeira coisa que iria fazer era visitar um cemitério, me senti tentado a fazer isso naquele exato momento, mas não trouxe velas e nem flores. Também não perdi ninguém muito próximo, apenas pessoas conhecidas ou parentes bem distantes que eu não tinha mais contato algum. Tive dois tios e uma prima doentes, mas graças a Deus sobreviveram. No entanto, me senti atingido todos os dias com aqueles números que golpearam o meu próprio ser, dia após dia, estatística após estatística. Foram tantas vezes que me saturei, não consegui mais aguentar ver as imagens trágicas de cemitérios e hospitais lotados. Nem muito menos os malditos números locais, regionais, nacionais e globais. Mais de 5 milhões no mundo, apenas oficialmente. No Brasil um destaque mundial, que para alguns sádicos é positivo. Para eles o importante é aparecer e continuar colonizando as mentes ignorantes. Nos últimos 600 dias tivemos uma média de 1000 mortes a cada dia. Isso foi muito forte para mim, tão forte que me acostumei com a morbidade ao ponto de chegar o dia dos mortos e nem o perceber. Para mim todo dia era dia desse anjo impiedoso. Faço uma pequena prece ali mesmo, sentado na calçada, prometendo mais uma vez a visita aos finados da Covid-19, noutro dia menos aglomerado, o que provavelmente deve ter acontecido hoje naquelas moradas eternas.

O ônibus chegou, minha viagem perdida recomeça. Subo as escadas pensando que na próxima vez que sair de casa talvez eu me lembre de olhar o calendário. 

Autor:

Robson Brito

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