O estudo sistemático da História não é uma ocupação de aficionados pelo passado, por mero diletantismo de desocupados professores das universidades por não terem encontrado algo mais útil para fazer. O presente assenta-se no tempo vivido e tanto melhor quanto este é mais bem compreendido e suas lições apreendidas para uso posterior, tal qual vacina, como profilaxia contra males doloridos ou insanáveis.
A crendice popular que encerra sabedoria também conduz a falsas conclusões. Vejamos. “Raios não caem duas vezes no mesmo lugar” ou “A História nunca se repete”. Claro que ambos os acontecimentos têm baixa probabilidade de ocorrência dentro exatamente das mesmas condições de contexto. Foi com o estudo científico das atividades elétricas da atmosfera que os raios, que ceifam vidas e produzem danos ao patrimônio, foram entendidos e os males que provocam minimizados. Estão aí os para-raios para comprovar.
A História, se devidamente refletida, pode ser o para-raios que evita a repetição, no presente, dos estragos que raios do passado causaram no desenrolar da vida política, econômica e social de uma coletividade. Mudam cenários, protagonistas e figurantes. Roteiros são reescritos, mas os argumentos centrais e os objetivos a serem alcançados, invariavelmente, se repetem e podem ser claramente observados por quem aprendeu com a História e tem os olhos do hoje bem abertos. Arrisco-me a dizer, ser a conquista do poder – e de suas benesses – o fulcro em torno do qual se desenrolam os episódios do drama ou da comédia.
Em agosto de 1964, o, então, Presidente da República Marechal Humberto Castello Branco proferiu famoso discurso, conhecido como o das Vivandeiras (“Eu os identifico a todos. E são muitos deles, os mesmos que, desde 1930, como vivandeiras alvoroçadas, vêm aos bivaques bolir com os granadeiros e provocar extravagâncias do Poder Militar.”) referindo-se aos que antes do movimento de abril daquele ano batiam insistentemente às portas dos quartéis pedindo intervenção militar no processo político nacional.
Entenderam os analistas políticos da época que o discurso tinha endereço certo. Era dirigido ao jornalista Carlos Lacerda que, há muito tempo, pregava a intervenção militar no processo político, mas cuja peroração golpista se intensificara muito nos últimos tempos quando o jornalista, pré-candidato à presidência da República nas próximas eleições de 1965, deveria enfrentar Juscelino, que saíra do governo em 1961 com grande popularidade, e que gozava de franco favoritismo.
Lacerda, deputado, jornalista panfletário, excelente orador mantinha o ambiente político agitado. Teve participação central na renúncia de Jânio e não aceitava o governo do trabalhista João Goulart, rotulado de comunista. A acusação contra Juscelino era de corrupção durante a construção de Brasília (que se mostrou infundada apesar dos inquéritos realizados no longo período em que o ex-presidente foi perseguido, preso e investigado). A expectativa do jornalista-candidato era uma intervenção militar cirúrgica, que na realidade afastasse Juscelino da eleição de 65, deixando-lhe o caminho livre ao Alvorada.
A nova ordem militar implantada no poder não definiu seu tempo de permanência. Ao perceberem que o cachimbo lhes havia caído da boca, uniram-se os inconciliáveis Lacerda, Jango e Juscelino na chamada Frente Ampla. Foram presos e tiveram direitos políticos cassados. Ficaram os marechais e os generais por mais de 20 anos.
Para compor a bula do uso profilático desta história, vou lembrar aqui de uma personagem, que poderia ter sido um protagonista e ter dado à História um fim menos melancólico do que o registrado nos alfarrábios, em que o último general ao entregar o poder saiu pela porta dos fundos do Palácio do Planalto.
Trago à cena o Coronel Jarbas Passarinho, por algumas vezes lembrado para ocupar a presidência da República na fase em que a ditadura era impopular e contestada. O Coronel tinha méritos pessoais para tanto, reconhecidos pelos companheiros de farda: liderança, apreciável preparo intelectual, carisma, facilidade de comunicação – tanto que após a democratização continuou a exercer atividades políticas. Sua mácula era não ter alcançado o generalato, ápice da hierarquia da instituição à qual pertencia. Naquela época, a carreira encerrava-se no generalato.
Nos anos sessenta, como agora, Lacerda e outras “vivandeiras alvoroçadas” achavam que se fizessem com que os tanques e “os granadeiros” entrassem na Esplanada, o Poder lhes seria passado, fraudando o processo democrático.
Assim como há pouco tempo se expressou um nefando líder da esquerda extrema, “não ganharemos eleições, tomaremos o poder”, também regimes de força de qualquer conotação ideológica radical pensam da mesma maneira. É da lógica interna dessas forças. Vide a História Universal – a de qualquer geografia e de qualquer tempo.
As Vivandeiras atuais que ponham suas barbas de molho! Ter servido as forças armadas não os tornam marechais ou generais. Ser-lhes-á mais garantido jogarem o jogo democrático. As tropas que estiveram na Esplanada o fizeram apenas em desfile.
Que Bom!
Autor:
Danilo Sili Borges. Crônicas da Madrugada. Brasília – Ago.2021
O autor é membro da Academia Rotária de Letras do DF. ABROL BRASÍLIA danilosiliborges@gmail.com
Excelente artigo… obrigada por compartilhar um poucod e história conosco.