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quinta-feira, 14 de novembro de 2024

Antes Que Eu Me Esqueça

Era uma manhã de quarta feira quando o telefone tocou.

“Pois não?”, eu respondi. “Quem gostaria?”

Nunca tive muita paciência para telefonemas matinais. Para ser sincero, nunca gostei de telefonemas em geral. Como uma pessoa sem familiares próximos e que já vive sozinha há tempos, nunca me sinto na obrigação de parar o que estou fazendo e atender o telefone. Mas nesse dia eu atendi.

“É o Seu Pereira?”, indagou o sujeito que me tirou a paz.

“Não.”, respondi. Logo ficou claro que não se tratava de nada mais, nada menos que um simples engano.

“Tem certeza?”

“Tenho sim.”

“Ah, então tá… sabe como posso falar com ele?”

A insistência do rapaz me deu uma ideia, no mínimo, peculiar. Afinal, o que ele tanto gostaria de falar com o tal do Seu Pereira? Decidi me arriscar, mesmo com meus cinquenta e poucos anos, e afirmei:

“Na verdade, sou sócio dele. O Pereira não tá vindo muito aqui esses dias, mas quando ele voltar mais tarde eu peço pra te ligar. Do que se trata?”

“Ah, esse assunto é melhor eu tratar direto com ele. Espero ele ligar então.”

Após me passar seu telefone, desligamos e voltei aos meus afazeres. Mas, é claro, eu não conseguia tirar a cabeça da conversa que o tal sujeito, o qual eu nem sabia o nome, tinha que ter única e exclusivamente com o Seu Pereira.

E, mais importante ainda; o quão antiético seria se eu seguisse com o rumo do meu plano? Afinal, eu poderia estar impedindo que ele tivesse uma conversa que potencialmente mudaria sua vida para melhor ou pior e eu, com meu egoísmo e falta do que fazer, iria tirar isso dele por mera curiosidade. Que absurdo.

Mas agora eu já havia ido longe demais. Ele estava esperando a ligação do Seu Pereira, vindo de meu telefone. A ligação vai acontecer.

Me preparei dignamente para o primeiro evento do qual participaria em mais de um ano de isolamento. A primeira vez que eu sabia que iria ligar para alguém, e que esse alguém estava esperando por isso. É estranho dizer, mas eu me senti importante.

A hora se aproximava, e eu já sentei ao sofá com o telefone na mão. Televisão desligada, janelas fechadas. Nada iria me atrapalhar.

“Acho que já posso ligar.”, pensei. E então liguei. O telefone dá dois toques, até que alguém o atende.

“Alô.”, diz a mesma voz que me ligou mais cedo. E agora que eu colocaria em prática meus anos como dublador.

“Alô, aqui é o Seu Pereira. Meu sócio me passou seu número e pediu pra eu te ligar.”

“Ah, tudo bom Seu Pereira? Aqui é o Cláudio, filho do Seu Jair com quem você bebia no Bar do Cicinho antes da operação.”

“Claro, claro, como vai Cláudio? Seu Jair aguenta todas ainda ou não?!”

“Na verdade, é por isso que tô te ligando. A cabeça dele não tá muito boa esses dias, e eu acho que faria bem pra ele escutar a voz de um amigo, sabe? Uma voz que ele conhece bem, pra ver se não ajuda ele a lembrar de algumas coisas.”, me contou Cláudio com a voz envergonhada.

Mas quem estava verdadeiramente com vergonha era eu. Vergonha de ter me metido em meio a algo tão delicado, e mais vergonha ainda por agora não poder cair fora.

“Ô Cláudio… passa o telefone pra ele, garoto.”

“Espera só um segundo.”

Esperei.

“Pereira?”, disse uma voz cansada, doce e fraca. E agora sobrava pra mim a torcida de que minha voz fosse o suficiente.

“Grande Jair… como é que você tá, velho amigo?”, eu disse, torcendo pra que a voz que eu criei fosse ao menos similar com a voz verdadeira do Seu Pereira.

“Tô na mesma, Pereira, na mesma desde a operação. O problema era mais ao fundo do que parecia.”

“Ah, mas vai passar, Jair, sempre passa! Você é guerreiro demais, sempre foi!”

“Dessa vez não, Pereira… dessa vez não. Nessa casa acham que sou surdo, mas eu sei bem da minha situação. Sei que não tem caminho de volta nessa estrada que peguei.”

Seu Jair, pelo pouco que eu vi, era uma pessoa eloquente, e sua cabeça não parecia estar tão ruim quanto seu filho me passou. Inclusive, me perguntei como ele não reconheceu que eu era uma farsa, e que estava tão sozinho quanto ele.

“Sabe, Jair? Pelo menos tivemos o Bar do Cicinho.”

“Ah, nem me fale, Pereira… esses sim foram bons tempos. Bom, mas vou te deixar em paz. Sei que Liliane deve estar te querendo só para ela, como sempre foi.”

“Me conhece bem, Jair! Me conhece bem…” eu disse em meio à falsas risadas.  “Mas olha, sempre que você quiser, pode me ligar, Jair. Sempre vou te atender.”

“Acho difícil, Pereira. Já nem consigo discar sozinho… Mas, antes que eu me esqueça, obrigado pela ligação. Me fez bem. Seja lá quem for que estiver aí.”

Pensei, pensei e respondi.

“Você fez bem pra mim também, Jair. Até mais.”

Desligamos o telefone.

Continuei sentado no sofá, mas liguei a televisão.

O telefone nunca mais tocou.

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