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terça-feira, 23 de abril de 2024

O padre homem em “O crime do Padre Amaro”, de Eça de Queiroz

Considerado por muitos especialistas como o “pai da prosa realista”, José Maria de Eça de Queiroz foi um célebre escritor português. É o maior nome do realismo em Portugal. Teve notoriedade a partir de seu romance de tese O Crime do Padre Amaro (1875) que é tido como o marco inicial do movimento realista em seu país. Em sua narrativa, Eça traz críticas categóricas à instituição Igreja Católica, ao celibato clerical e à sociedade de sua época. “O Crime do Padre Amaro” passa-se em Leiria, uma pequena vila de província, beata e soturna, onde um padre corrupto seduz e leva à morte a infeliz e ingênua Amélia.”  (MOISÉS, 2001, p.195)

Eça consegue traçar, por meio de sua escrita, cada ação dos personagens no percurso da narrativa, ao mesmo tempo que consegue expor a podridão, a hipocrisia e o falso moralismo do clero e da burguesia portuguesa, trazendo a nós um padre totalmente humano em termos de sentimentos, cheio de desejos e de prazeres. Amaro não se tornara padre por amor à religião católica e muito menos por vocação ao clero, mas sim através uma imposição de sua tia adotiva, que quando falecera, deixara em escrito que o jovem seguisse para o seminário e posteriormente tivesse uma vida de padre.

“[…] O pai de Amaro tinha morrido de apoplexia; e a mãe, que fora sempre tão sã, sucumbiu, daí a um ano, uma tísica de laringe. […] A senhora  marquesa resolvera desde logo fazer entrar Amaro na vida eclesiástica. […] Num domingo gordo, uma manhã, depois da missa, ao chegar-se ao terraço, a senhora marquesa de repente caiu morta com uma apoplexia. Deixava no seu testamento um legado para que Amaro, o filho de sua criada Joana, entrasse aos quinze anos no seminário e se ordenasse. […] Por esse tempo começava a sentir um certo afastamento pela vida de padre, “porque não poderia casar”.” (QUEIROZ, 2016, p.35, 37 e 40)

Como podemos denotar na citação acima, retirada do capítulo 3, em um flashback da narrativa, Amaro ficara órfão de pai e de mãe logo aos seis anos de idade, ainda muito jovem, tem como tia adotiva a marquesa de Alegros. Esta por ser uma pessoa muito devota, tem a ideia de que com o avançar de sua idade e com seu falecimento, Amaro poderia ficar desamparado. É então que decide escrever em seu testamento que a vida do jovem rapaz seria dedicada ao seminário e posteriormente ao clero. Mesmo sem consultar Amaro, ela registra essa vontade por escrito e compromete toda a vida do moço com algo que ele não tinha a menor vocação: ser padre.

Amaro desejava em seu íntimo ter uma vida diferente daquela que o destino lhe parecia reservar. Em uma vida clerical, o jovem não poderia imaginar usufruir de seus desejos carnais, como por exemplo, de ser um bom marido ou de ser um bom pai. Em uma das passagens, o narrador nos mostra o desejo do rapaz em poder ter a sua vida livre das amarras religiosas e amaldiçoa a principal culpada por este destino indesejável:

“E, espantado quase daquelas delicadezas de sensibilidade que descobria subitamente em si, pôs-se a pensar com saudade – que se fosse um homem livre seria um marido tão bom! Amorável, dedicado, dengueiro, sempre de joelhos, todo de adorações! Como amaria o seu filho, muito pequerruchinho, a puxar-lhe as barbas! À ideia daquelas felicidades inacessíveis, os olhos arrasaram-se-lhe de lágrimas. Amaldiçoou, num desespero, “a pega da marquesa que o fizera padre” e o bispo que o confirmara!”(QUEIROZ, 2016, p.109)

Amaro Vieira tinha em seu íntimo o desejo de ser um homem da sociedade, uma pessoa livre, que pudesse casar e construir a sua própria família. O narrador nos mostra isto na passagem acima na qual o moço cria em sua imaginação como poderia ser a sua vida se não tivesse sido obrigado a se tornar padre. E se fizermos uma ligação com a citação anterior, na qual ele diz claramente que não poderia casar-se, percebemos a posterior frustração, logo o seu ódio explícito ao lembrar-se da marquesa e que ele, Amaro, está onde está por uma decisão dela e não dele próprio; e logo a amaldiçoa, juntamente com aquele que o confirmara padre: o bispo.

Conseguimos denotar até aqui que Amaro Vieira vivia em uma prisão mental, espiritual e social. A vida clerical lhe impedia de ser um homem como ele desejava ser. Vivia o moço sob forte julgo de si mesmo ante seus desejos insaciáveis, entre os tais, de ser um homem completamente livre. Conseguimos, pois, chegar ao pensamento de que ele só cometera o crime passional com Amélia em virtude do cativeiro psicológico que lhe sufocava a vida.

“[…] E, diante daquelas dificuldades que se erguiam como as muralhas sucessivas de uma cidadela, voltavam as antigas lamentações: não ser livre! Não poder entrar claramente naquela casa, pedi-la à mãe, possuí-la sem pecado, comodamente! Por que tinham feito padre? Fora “a velha paga” da marquesa de Alegros! Ele não abdicava voluntariamente a virilidade do seu peito! Tinham-no impelido para o sacerdócio como um boi para o curral! Então, passeando excitado pelo quarto, levava as suas acusações mais longe, contra o celibato e a igreja; por que proibia ela aos seus sacerdotes, homens vivendo entre homens, a satisfação mais natural, que até têm os animais?” (QUEIROZ, 2016, p.153)

Percebemos no trecho acima a inquietação de Amaro descrita pelo narrador. O seu incômodo em tentar demonstrar ser uma pessoa por fora enquanto era outra totalmente diferente por dentro o fez refletir sob uma série de questões acerca do celibato. Ele queria poder, em suas palavras, possuir Amélia livremente, sem medo ou sem culpa ante a sociedade, queria desfrutar do sentimento que sentia pela menina sem amedrontamento. Em determinado momento, volta a murmurar da marquesa de Alegros. E um ponto muito interessante: questiona de como a instituição católica poderia privar o homem de seus mais íntimos desejos se até os animais sentiam a necessidade de tal.

Então, conseguimos deduzir que Amaro Vieira tentou, arriscadamente, expor sua natureza de homem, ou seja, características inerentes a todos os seres, enquanto padre. Muito provavelmente o crime que cometera corresponde a três coisas que podemos mencionar: a corrupção (algo que predominava tanto na sociedade burguesa portuguesa quanto no clero); a sua natureza (visto que o moço faz reflexões dos motivos da igreja proibir algo tão natural aos homens, até mesmo aos animais); e o medo de pecar (tendo a ideia do celibato na vida clerical, o qual o proibia veementemente que se relacionasse com qualquer mulher ou buscasse cultivar sentimentos considerados pecadores).

Autor: Walisson Jonatan de Araújo Maia

Referências

MOISÉS, M. A literatura portuguesa. São Paulo: Cultrix, 2001.

QUEIROZ,  Eça de. O crime do Padre Amaro – 2ª ed. Rio de Janeiro: BestBolso, 2016.

Walisson Jonatan de Araújo Maia
Wallysson Maiahttp://lattes.cnpq.br/8683005938555663
Walisson Jonatan de Araújo Maia (Wallysson Maia) é graduado em Letras com habilitação em Língua Portuguesa e Suas Respectivas Literaturas pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte; blogueiro, designer e professor.

4 COMENTÁRIOS

  1. Eu gostei muito de relembrar, aos meus tempos de leitura(já nem recordava mais o romance “O Crime do Padre Amaro”,de Eça de Queiroz.
    Muito bom, Walisson Maia!

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